Neil Gaiman para crianças

simpsons-gaiman-screenshotQuando falei sobre O oceano no fim do caminho por aqui, comentei que fazia já algum tempo que Neil Gaiman não escrevia para adultos. De fato, se você for dar uma conferida na lista de ficção escrita por ele, perceberá que a balança está tendendo muito mais para o lado infantojuvenil do que o adulto. Já disse aqui e martelo quantas vezes precisar: não tenho problema algum com o termo, vejo mais como uma orientação para qual é o público mais adequado – e acredito de verdade que quando é bom mesmo, agrada qualquer idade.

No caso do Gaiman, volta e meia é justamente o caso: pode ser uma coletânea de contos como M is for Magic, pode ser um picture book como Cabelo Doido, um YA como O livro do cemitério, não importa. O negócio é que é divertido, realmente gostoso de ler e algumas histórias permanecem com você por um bom tempo depois da leitura (algo que acho que fala mais sobre a qualidade de uma obra do que o público-alvo, por exemplo).

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Penny Dreadful S01E01 (Night Work)

Quando falamos de alguns títulos da literatura do século XIX, pensamos nas histórias já em seu formato fechado, em um único livro (ok, às vezes mais de um livro). O negócio é que era bem comum naquela época as histórias serem publicadas aos poucos em periódicos. Fazendo uma comparação com a tv, o periódico seria seu canal favorito e algumas histórias seriam novelas ou séries que você costuma acompanhar. Charles Dickens? Vários romances saíram capítulo por capítulo no Household Words. Sir Arthur Conan Doyle? vários contos de Sherlock Holmes apareceram primeiro na Strand Magazine. E isso para citar os dois mais conhecidos.

Nesse formato em série existiam também os penny dreadfuls, publicações que contavam histórias de horror e eram vendidas por, ahnnn… um penny (dona Wikipédia pede para diferenciar e dizer que é o “old penny“). Muito embora eu goste muito de assuntos relacionados à Inglaterra do século XIX, a primeira vez que ouvi falar dos penny dreadfuls foi através da Kika, enquanto ela pesquisava para escrever o livro Construindo Victoria.

Enfim, a ideia era de entretenimento barato para quem gostava de histórias com monstros e sangue, muito sangue. Para ter uma ideia, a primeira vez de Sweeney Todd no mundo da literatura foi em The String of Pearls: A Romance, publicado originalmente como um penny dreadful. Caso queira saber mais sobre o assunto, recomendo esse link aqui. E se eu estou falando tudo isso é um pouco para que você possa entender o espírito da nova série do canal Showtime, chamada (sim, você adivinhou) Penny Dreadful.

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As Primeiras Quinze Vidas de Harry August (Claire North)

História de sempre: li alguma resenha num canto, achei interessante, resolvi ver qualé. Não é sempre que isso funciona, vide o caso de A Violent Century que apesar de ter uma ideia legal acaba virando um livro só “meh”.  Mas com The First Fifteen Lives of Harry August, me encantei já de primeira. E olha, isso é beeeem difícil de acontecer comigo, sou meio chatonilda e só me entrego de fato lá pelos 20% de um livro (quando decido se vou seguir em frente ou se vou largar). E se comento sobre esse meu encanto inicial é justamente para explicar desde já que embora a história seja ótima (bem sacada, divertida, etc.), a maior qualidade da obra é o como a autora escreve, simples assim.

Você não precisa de ganchos forçados para querer continuar lendo o livro capítulo após capítulo, porque a narrativa de Claire North é por si só viciante. Como comentei no twitter: ela poderia estar falando sobre batatas, e você continuaria lendo achando a coisa mais legal do mundo, de tão envolvente que é o estilo da autora. Eu sei que é o tipo de coisa que não faz muita diferença para quem quer mais é saber do enredo, mas pelo menos no meu caso ter em mãos um livro tão bem alinhavado, uma narrativa tão fluida prende muito minha atenção.

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The Violent Century (Lavie Tidhar)

Clichê de resenha de “blog literário”: começar texto descrevendo a dificuldade de comentar sobre um livro do qual você gostou demais. Eu já devo ter feito isso por aqui umas trocentas vezes, e olha, é difícil mesmo. Sensação de que não importa o quanto você escreva, sempre deixará algo importante de fora, ou não conseguirá passar de forma satisfatória o que tanto te encantou ali. Só que agora eu encontei um pepino novo para quem gosta de escrever sobre o que tem lido – com The Violent Century (de Lavie Tidhar), descobri um campo novo do “putz, é difícil comentar sobre isso”. Anota aí: “livros com enredos bem sacados, ótimas personagens, momentos marcantes e que mesmo assim não chegam perto dos livros da sua lista de favoritos”. Sério, complicado. Você fica tentando entender o que foi que faltou ali, se tinha tudo para funcionar.

Primeira vez que ouvi falar de The Violent Century foi em um artigo do io9, que anunciava que o romance era “like Watchmen on crack“. Não precisava nem ler muito mais, o autor já tinha minha curiosidade. Mas vamos lá: imagine como seria o cenário da Segunda Guerra Mundial (e os eventos históricos seguintes) se por acaso existissem super-heróis. Em The Violent Century conhecemos Fogg e Oblivion1, que costumavam trabalhar em dupla no “Retirement Bureau” e que acompanharam de perto grandes momentos do século XX. Tudo normal, não fosse um detalhe: o “Retirement Bureau” é uma espécie de órgão secreto do governo Britânico dedicado aos Übermensch, pessoas que após “A Mudança” passaram a ter super poderes. Fogg, como o nome sugere, controla o nevoeiro e Oblivion faz com que as coisas desapareçam.

Veja, a ideia é muito legal, porque por mais que já tenhamos pensado no que aconteceria se super-heróis realmente existissem ao ler Watchmen, o livro de Tidhar segue além e pergunta (com uma frequência que parece refrão de poesia): what makes a hero? Então não é como se você tivesse mais do mesmo em mãos, há algo de novo ali. Eu queria poder citar todo o trecho do Dia D com os heróis americanos para você entender o que quero dizer, mas ele ficaria longo demais aqui. De qualquer forma, acho que foi naquele momento que eu pensei “Ok, não gosto do estilo da narrativa, mas vou até o fim”.

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  1. li o livro todo imaginando o Oblivion como o Tom Hiddleston, virge! 

O Segredo do Meu Marido (Liane Moriarty)

Sei que em um mundo cada vez mais umbigo esse tipo de constatação às vezes chega com algum atraso, mas é inevitável em algum momento perceber que não adianta planejar, organizar, prever: muito da sua vida dependerá de terceiros, que podem simplesmente não seguir seu roteiro. Pensei bastante nisso enquanto lia O Segredo do Meu Marido (de Liane Moriarty), especialmente quando a história se concentrava na control freak Cecilia: mãe de três meninas, muito bem casada e igualmente bem sucedida na carreira de vendedora de tupperware. Tem o tal do “pacote completo”, que consegue manter com muito trabalho (e organização). Tudo segue bem até que por acaso encontra um envelope. É uma carta de seu marido, que ela deve ler apenas quando ele morrer.

É natural que o leitor acabe pensando que o livro será sobre o conteúdo dessa carta (até porque o dilema de Cecilia sobre ler ou não se estende por vários capítulos) e pense que o tal do “segredo do marido” seja um mistério a ser desvendado (ou daqueles que sustentam a curiosidade do leitor até o fim do livro). Não é o caso. O segredo do meu marido é um daqueles livros “enganadores”, que tão logo o leitor avança na leitura, percebe que não era exatamente o que esperava, mas talvez até algo melhor. Então digo desde já que não acho que o segredo seja o mais importante na história, mas para quem tem frescura de spoiler é sempre bom avisar então lá vai: daqui para frente tem spoilers, etc.

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Quiçá (Luisa Geisler)

Já comentei sobre isso quando escrevi sobre O lado bom da vida, mas como ninguém nunca clica em links vou falar novamente: o ato de ler um livro é, de certa maneira, um jogo de adivinhação. É algo quase inconsciente, funcionando como parte do processo de recepção da história. Lembro aqui de um trecho de A leitura de Vincent Jouve que explica bem essa questão:

O texto, com felicidade qualificado por Eco de “máquina preguiçosa”, necessita das previsões do leitor para funcionar. Depende dessa condição para poder confortá-lo, surpreendê-lo ou, simplesmente, interessá-lo. (pg.76)

Dando um exemplo, aposto que nesse exato momento você está pensando “Por que diabos a Anica está citando esse cara se o título ali no topo indica que ela quer falar de Quiçá da Luisa Geisler?“. Ok, acho que deu para entender como funciona. O negócio é que acredito que em alguns casos a participação do leitor nesse processo de adivinhação não toma um espaço tão importante na leitura, em outros, como acontece com Quiçá, grande parte do charme do livro é que ele dá uma importância maior para o leitor e suas adivinhações, graças à estrutura da narrativa.

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Rodada de YA

Explicando pela enésima vez porque sempre tem o perdido que chega aqui por causa de um único post e aí acha que eu tenho preconceito sobre YA e blablabla. Não, eu não tenho. Eu curto, me divirto e alguns eu considero acima da média, vide o caso de Eleanor & Park e A culpa é das estrelas, por exemplo. Mas a verdade é que os YA que andei lendo recentemente não são exatamente aqueles sobre os quais eu tenho muito a comentar, então resolvi agrupá-los em um post só (sim, esse que você está lendo agora), para não ficar sem o registro (porque eu já estou naquela fase em que vejo post antigo meu aqui e penso “Caramba, eu li esse livro??? Sério???”). Bom, aos comentários.

Anna e o Beijo Francês (Stephanie Perkins): Anna é uma garota americana que vai passar o último ano antes da faculdade em uma escola em Paris. Pode ser o seu sonho, mas o fato é que ela não queria nada disso, especialmente porque não queria viver longe da melhor amiga e do rolinho que poderia virar algo mais sério. Aos poucos ela vai conhecendo pessoas novas e vai se deixando encantar pela cidade.

Então. Apesar de o enredo tomar um caminho bem previsível, o livro me conquistou principalmente porque as descrições que Perkins faz de Paris são ótimas, você quase viaja junto com a protagonista. a escola de Anna fica no Quartier Latin, mesma região em que fiquei quando fui para lá, então acabei morrendo saudades (e de vontade de viajar). Além disso, o interesse romântico da menina é um fofo, então o lado noveleira meio que pega o balde de pipoca e acompanha animada o will they won’t they por mais que já tenha ideia que yes, they wil.
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O escolhido foi você (Miranda July)

Não sei sobre você, mas eu devo ter memória seletiva quando o assunto é resenha de terceiros, porque não é possível eu ler opiniões de outras pessoas – em alguns casos até bem detalhadas – e ainda assim me surpreender com livros. Vai ver é por isso que não ligo muito para spoilers, vá saber. O fato é que quando finalmente comecei a leitura de O escolhido foi você de Miranda July eu já tinha lido tanta coisa sobre o livro que em teoria não haveria mais espaço para surpresas. Mas caramba, que surpresa. E que surpresa boa.

Então, aquilo que eu lembrava de ter lido em toda resenha e que eu conto aqui para você caso ainda não tenha visto nada sobre o livro por aí (o que acho difícil, já que ele foi lançado em fevereiro do ano passado, mas nunca se sabe, né): Miranda July é roteirista, e estava vivendo um momento de bloqueio criativo quando um dia no meio da já rotineira procrastinação, tem a ideia de entrevistar pessoas que publicam anúncios no PennySaver. Quer conhecê-las, capturar um tanto de suas histórias e transformar isso em um projeto paralelo que justifique seu “não-escrever”, digamos assim. Continue lendo “O escolhido foi você (Miranda July)”

Meu coração de pedra-pomes (Juliana Frank)

Da minha época de solteira acostumada a voltar do bar só depois das cinco da manhã, eu lembro de um dia em que cheguei em casa morrendo de sede, abri a geladeira e tomei um belo gole de coca-cola. Calma, não é aqui que eu imito o ursinho polar e faço HUMMMMM. Negócio é que um segundo depois descobri que não era coca o que eu tinha tomado, mas shoyu. A memória do incidente que na época serviu como lição (se chegar bêbada, não abra a geladeira) voltou assim que avancei na leitura de Meu coração de pedra-pomes, de Juliana Frank. Calma, não é um livro ruim como beber shoyu às cinco da manhã. É que considerando algumas resenhas que li por aí, estava esperando algo completamente diferente dessa obra lançada em no ano passado pela Companhia das Letras.

Eu não sei bem como foi que criei essa imagem, mas a impressão que tinha é que Lawanda, a faxineira do hospital, seria uma espécie de mistura de Amélie Poulain com Macabéa, e que o livro seria todo fofo, olha aquela borboleta na capa que não me deixa mentir. Bom, eis o choque de perceber que Lawanda não tem nada de fofa ou apática. Ela é tosquíssima e justamente por causa disso muito engraçada. Aliás, o tom do romance é esse: cômico. Um humor ácido e algumas vezes beirando ao nonsense (a começar pelo primeiro capítulo, com um julgamento da autora), do jeitinho que eu gosto.

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Todos Nós Adorávamos Caubóis (Carol Bensimon)

Então que lá em 2012  saiu aquela Granta com os jovens autores brasileiros e no Meia Palavra fizemos uma série de posts onde dois membros da equipe comentavam sobre as impressões que tiveram de um dos contos da coletânea. Por coincidência, dois dos que mais me empolgaram na época não eram exatamente contos, mas trechos de romances ainda não publicados: Apneia, que saiu pela Companhia das Letras como o ótimo Barba Ensopada de Sangue do Daniel Galera e Faíscas, que saiu ano passado também pela Companhia como Todos Adorávamos Caubóis, da Carol Bensimon. Em comum, duas coisas: apesar da brevidade (contos, lembra?) prendiam a atenção do começo ao fim, ao ponto de realmente despertar curiosidade sobre o que viria a seguir (e quando os romances seriam publicados).

Faíscas, se eu não me engano, é exatamente o primeiro capítulo de Todos Nós Adorávamos Caubóis, ou seja, a introdução para a história de Cora e Julia. Na época ficava claro um desentendimento no passado, provavelmente relacionado à viagem de uma delas, bem como o fato de que aquela viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul surgia para Cora (narradora e protagonista) como uma oportunidade de reatar antigos laços. E no final das contas o romance durante os outros capítulos se desenvolve exatamente assim: a viagem de Cora e Julia, os estranhamentos sobre os tempos em que passaram distantes, as explosões de frases não-ditas presas na garganta, a intimidade compartilhada – tudo isso com um tempero de bons road movies norte-americanos.

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