The Echoes da anglo-australiana Evie Wyld (ainda sem tradução no Brasil) inicia com o que é até o momento minha frase de abertura favorita das leituras de 2025. Diz o narrador: “Eu não acredito em fantasmas, o que desde minha morte vem sendo um problema.”. O fantasma-narrador conversa com o leitor de um ponto recente do pós-vida, ele ainda não sabe o que precisa fazer para sair daquela situação, ele não sabe o que pode fazer já que é um ser incorpóreo e invisível. Ele também não lembra como morreu. Mas sabe que está preso na casa onde vivia com a namorada Hannah.
O que eu gosto desse primeiro capítulo é que de certa forma ele já nos apresenta o tom da história, mesmo que ela cresça em forma nos capítulos seguintes: é engraçada na mesma medida em que é melancólica. Ela é, principalmente, uma reflexão sobre como nossas ações no passado acabam repercutindo não só no nosso presente, mas nos dos outros também. E isso conseguimos ver inclusive na estrutura do romance: Max é o mestre de cerimônias, abre o livro com seu capítulo em primeira pessoa que também iniciará a sequência de capítulos que estruturará o livro.
Depois de Max vem sempre Hannah, num passado pouco distante, registrando os últimos meses antes da morte de Max – os capítulos em terceira pessoa. Depois desse passado recente somos jogados para um passado mais distante, na adolescência de Hannah vivida na área rural australiana. Finalmente, fechando a sequência, vemos um pedaço da vida de uma das pessoas desse passado distante de Hannah. Como dá para perceber, Max não é a personagem principal -e de certa forma ele nem será o personagem principal da vida de Hannah. Mas é um daqueles casos de pessoas que passam na nossa vida e deixam uma marca, que (nesse caso literalmente) nos assombram mesmo depois de anos.

Eu imagino que inicialmente ao falarmos “fantasma observa o luto da pessoa amada” lembramos um tanto do enredo de Ghost Story (2017), e tem alguns aspectos do livro que realmente parecem repetir o que vimos no filme de David Lowery, principalmente a percepção de tempo num espaço restrito. Lembrando, Max não pode sair da casa – e é por isso que ele recebe só pedaços de informação e, obviamente, nós leitores também. O que Wyld vai liberando é o suficiente para nos encher de perguntas e atiçar nossa curiosidade: como Max morreu? Max vai descobrir que Hannah praticou um aborto um pouco antes dele morrer? O que aconteceu com Hannah no passado para que ela não tenha mais contato com a família?
As linhas temporais cobrem momentos diferentes, mas quando vamos nos aproximando do final vemos que são no fim, todos sobre uma coisa só. Max aprende muito mais sobre Hannah a partir do que observa como fantasma. E nós, como leitores, aprendemos sobre os dois enquanto a história se desenrola. É interessante que inicialmente eu cheguei a cogitar a possibilidade de Hannah ter abortado porque o relacionamento dela com Max era infeliz – algumas coisas ditas e lembradas quase me fizeram pensar que a história seguiria para o lado de outro romance de fantasmas que eu gosto muito, The Regrets de Amy Bonnaffons.
Mas não é o que acontece. Em The Echoes, o fantasma é só o de um cara normal. E por normal eu quero dizer que carrega toda a complexidade de um ser humano, sendo capaz ao mesmo tempo de muito carinho e cuidado, mas também de não ter o tato necessário para ajudar a pessoa que claramente está patinando em uma área da vida (além de ser um tremendo chato, mas vá lá, é um chato engraçado – pelo menos para nós que não convivemos com ele). Tem uma passagem em específico que eu achei a cara dele: observando Hannah imitá-lo ao preparar uma refeição, nós temos em um ponto uma mulher enlutada, lembrando de um passado recente que não teremos mais. E Max sabe disso, entende e se comove, mas ao mesmo tempo fica exasperado com a falta de jeito da mulher para cozinhar.
Mas como disse, ele é o mestre de cerimônias e o foco principal é Hannah. Nós sabemos que há um evento traumatizante no passado dela, e obviamente entendemos muito do que acontece conosco nos primeiros anos se refletirá na nossa vida adulta. Eu imagino que a revelação desse evento não virá como muita surpresa para nenhum leitor, porque cada capítulo do passado distante deixa pistas do que acontecerá: o medo de Hannah de ser abandonada, a relação próxima que tem com a irmã, a admiração que nutre pelo tio diretamente proporcional ao desprezo que sente pelos pais. Nós veremos como todas aquelas personagens chegaram naquele ponto crucial e entenderemos o que levou ao ocorrido – não é algo pensado como um “plot twist” é, no fim das contas, uma observação. Como se o leitor fosse um fantasma apenas observando o desenrolar daquelas vidas naquele lugar em específico – o leitor não pode agir sobre o que ocorre ali, não pode alterar os eventos. Pode apenas testemunhar.
O que eu ainda não consigo entender é a escolha por situar o passado distante de Hannah no local que eles chamam de The Echoes (que dá nome ao livro), e tem relação com as Gerações Roubadas da História australiana. É um momento do passado daquele país que eu não conhecia, e nesse sentido eu acho que seja um elemento positivo da obra trazer esse recorte (porque é tão fácil esquecer e desconhecer quando tudo vira um passado incorpóreo e invisível, tal como um fantasma, não?).
A casa onde Hannah viveu infância e adolescência ficava no terreno de uma escola usada para educar crianças indígenas que foram roubadas de suas famílias para serem educadas para trabalharem para os brancos (e, a longo prazo, casarem com brancos e passarem a fazer parte da sociedade). É uma história de violência e apagamento de um povo que me fez pensar muito nas missões em territórios indígenas aqui no Brasil – mas, ao contrário do que ocorre aqui, lá houve qualquer exercício de tentativa de reparação.
Chama a atenção que apesar de ser um romance de fantasmas, o único momento em que o tom passa perto do terror – pelo menos no sentido clássico do termo – é quando falam das crianças que foram enterradas naquele terreno, e de como seus fantasmas parecem ainda vagar por ali. Mas, como disse, achei a escolha estranha porque de modo algum o passado da Geração Roubada se esquipara ao que acompanhamos das personagens da vida de Hannah, e mesmo a protagonista parece sempre completamente desconectada do que ocorreu em seu país. A aproximação com crianças indígenas através dos bolos da mãe, os discursos do tio sobre a necessidade de reparação, a curiosidade da filha da amiga que ela não tem como sanar: parece sempre uma relação na periferia da vida da personagem.
De qualquer forma, as linhas temporais aos poucos vão tornando tudo mais claro, e conforme as respostas começam a chegar, fica a sensação de que em algum momento teremos alguma resolução para o fantasma de Max. E eu confesso que embora possa soar um tanto piegas (Hannah voltando para casa quando já é avó, contando para a neta sobre o quase-avô), na hora que Max fala “Sanduíche.”, fazendo referência a uma piada interna deles, o desfecho acabou me conquistando. Porque no fim das contas serve como representação do que foi discutido ao longo de toda a história: mesmo tendo compartilhado apenas cinco anos da longa vida de Hannah, os ecos das ações de Max continuaram a reverberar.
***
Eu terminei o livro e por coincidência um dia depois assisti Presence do Steven Soderbergh. Eu estava louca para ver desde que fiquei sabendo a premissa, de que seria uma história de família chegando em casa assombrada (dessas a gente já viu várias, certo?), mas o ponto de vista da história é sempre o do fantasma. É bem executado, mas é fácil esquecer que é o fantasma o tempo todo ali, talvez por isso algumas pessoas estejam se queixando que não acharam tão assustador.
Mas numa relação com The Echoes, percebi que as duas narrativas usam a questão do ponto de vista do fantasma para soltar informações aos poucos. Mas no caso de Presence algumas perguntas não serão respondidas – pode soar meio frustrante, mas é parte da experiência não saber de tudo o tempo todo.
Presence chega aos cinemas do Brasil no dia 27 de março.