Eu queria ter gostado mais de Acompanhante Perfeita (Companion, 2025), mas até agora eu não se se é o filme que bate na trave mesmo, ou se é porque eu já vi a mesma ideia melhor desenvolvida em um livro no ano passado. Eu achei bem sacado nos minutos iniciais eles não entregarem logo de cara a natureza da Iris (embora por trailers e outras peças de marketing a gente já saiba). Você vê Iris e Josh como um casal normal e apaixonado, fora uns “opa, pera.” que surgem do nada (mas bem discretos, como o fato de Iris chegar carregando as malas grandes sozinha enquanto Josh está só com uma bolsa leve, ou a Iris toda animada depois do sexo e Josh só vira para o lado e diz um “vai dormir, Iris”).
Talvez o que tenha me incomodado é que o enredo tenha girado mais em torno de Iris tentando sobreviver aos eventos da viagem com os amigos de Josh. Em muitos momentos o filme é mais comédia do que um suspense, o que parece tirar um pouco o peso do que é que significam as ações de Josh ou mesmo a relação dele com Iris. É um filme ruim? Não é. Mas fica a sensação de que poderia ser bem melhor.
Quando falo sobre o que poderia ser melhor, o que imediatamente vem à mente é o Annie Bot da Sierra Greer (ainda sem tradução no Brasil). Ao contrário de Iris, Annie sabe que é uma robô – sabe inclusive qual tipo de robô ela é. Seu dono, Doug, ajustou as configurações de Annie para que ela fosse o mais real possível e eles parecem viver uma boa vida como um casal, embora ele tenha lá uma certa vergonha de apresentá-la para os amigos (isso também acontece no Acompanhante Perfeita, aquela ideia de sentir que a masculinidade é questionada, “não sou homem o suficiente para conseguir uma mulher de verdade”).
E está tudo bem, até que começam os abusos. O que Josh faz com Iris no filme é fichinha perto do que Doug faz com Annie no livro. Tem uma sequência em específico que mesmo um ano depois eu ainda sinto um desconforto em lembrar: Doug coloca a libido de Annie no máximo e a tranca num armário. Ou o momento em que ele traz uma nova robô e deixa Annie em um estado em que não pode agir, mas está consciente e consegue ouvir Doug fazendo sexo com a nova robô. Ela vai começar a ler, a se informar e aos poucos vai percebendo que para seu dono ela é só um objeto – e não só por causa das inseguranças criadas por situações da vida dele como um pé na bunda de uma ex ou, mais obviamente, porque ela é um robô. Annie é só um objeto porque para ele qualquer mulher seria assim.
Enquanto eu lia Annie Bot lembrei de uma reportagem sobre uma robô chamada Samantha que estava em exposição em um festival nos Estados Unidos. A robô foi tão molestada pelos homens presentes no evento que precisaram tirá-la do local para fazer reparos. O dono do robô acalmou a todos dizendo que Samantha foi desenvolvida para “aguentar bastante” e que sobreviveria. Ufa, né.
E a gente poderia dar de ombros e dizer que tudo isso é só ficção, ou que é só “com robô, nenhum homem faria isso com uma mulher de verdade”, mas hum, não. As notícias estão cheias de casos de homens que se sentem donos de suas mulheres, que querem moldá-las conforme seus desejos e que praticam violência na primeira oportunidade. Talvez o mais assustador na leitura de Annie Bot para mim tenha sido perceber justamente o quanto da violência sofrida pela personagem não passa muito longe dos abusos sofridos diariamente por “mulheres de verdade” o tempo todo, no mundo todo.
E elas não partem de homens que em qualquer história seriam descrito como “pessoas más”. São os Joshs e Dougs da vida, caras normais. Os Neils aliados das gurias. Os Titos amigões da galera. É toda sorte de homem, com apenas uma coisa em comum: eles sempre foram imaturos naquele momento em questão, mas prometem que vão mudar.
Não tem moral da história, não tem conclusão. A gente vai tocando o barco e tentando desviar. No mais, se tiverem oportunidade, leiam Annie Bot.
Esse problema é imenso, tem muitas facetas e camadas, mas gostaria de falar somente de um ponto, que é a ideia de conquista. Olhar para um relacionamento como uma conquista já traz uma visão deturpada, porque o conquistador assume total controle do que conquistou. Em épocas passadas, era visto como dono mesmo dos conquistados, e a historia nos mostra quantas atrocidades foram cometidas por conquistadores…
Então associar a relação com uma mulher com uma conquista já traz um componente irrevogavelmente toxico pra dinâmica da coisa, pois implica em haver uma resistência inicial (dai, creio eu, a imbecil ideia de que o não da mulher quer dizer sim), que deve ser sobrepujada até que se tenha domínio total sobre o outro. Qualquer relacionamento iniciado com essas premissas, mesmo que embelezadas em purpurina romântica, não tem como não ser toxico em algum nível.
nunca tinha pensado por esse lado, e faz todo sentido o que vc falou. e inclusive explica pq em tantos casos após a tal da conquista o relacionamento esfria rapidamente.