Originalmente eu tinha sentado aqui para falar sobre meus dez livros favoritos de (*checa o calendário*) 2023, mas aí eu abri o post constatando novamente que meus livros de 2023 foram na maioria escrito por mulheres (como em quase todos os outros anos desde 2013), resolvi aproveitar o gancho para falar só um pouco sobre a treta dos livros da FUVEST e quando vi, pans, não era mais sobre meus favoritos. Enfim. Vamos de lista de livros de vestibular, outro dia fecho a lista de melhores leituras.
Desde que anunciaram que a lista teria apenas livros escritos por mulheres, disparou o chororô – e o engraçado é que se você notar bem, ele tem um ritmo parecido com o do chororô corporativo de “agora vai contratar só porque é mulher? Não vejo problema em contratar mulher para a equipe, desde que ela seja A MELHOR entre os candidatos”.
E aí te pergunto: quem define quem é melhor? Quais os critérios?
É um pouco daquela história de o que veio antes, se foi o ovo ou a galinha, não é? Senta que lá vem história: entrei no curso de Letras em 2001, cheguei lá por causa da paixão pela leitura (e por isso a escolha do Bacharelado em Estudos Literários). Minha grade era dividida em 4 anos, cada um dividido em 2 períodos. Quando você chega aos 40 percebe que o que parecia uma enormidade de tempo é na realidade um tico da sua vida, uma nota de rodapé. E em termos de leitura do cânone nacional, um tempo muito curto para ler tooooooodos os livros. E é por isso que as disciplinas acabam trazendo apenas um recorte do que representaria mais adequadamente a literatura nacional em determinados períodos. É natural que algo fique de fora.
O problema é que quem fica de fora, normalmente são as mulheres. Para explicar melhor vou pinçar um exemplo bem ilustrativo. O estudante de Letras – especialmente o que vai para o lado da Literatura – encontrará alguns livros inescapáveis. Na área de Literatura Brasileira (e se bem me lembro, até em Teoria da Literatura), História Concisa da Literatura Brasileira era presença constante. Não é por acaso: Alfredo Bosi é bastante respeitado por seu trabalho, e o livro traz uma relação bem grande de autores nacionais – para que o acadêmico de Letras possa ir um pouco além do que o professor comenta em aula.
Mas o curioso é que um livro tão importante na formação do estudante de Letras tem uma intrigante falta de mulheres entre os nomes citados. Lógico, aparecem aquelas que conseguiram furar o bloqueio e que são também os nomes que fecham a proporção de no máximo 2/10 nas listas de vestibulares. E eu não vou revisitar o livro todo para afirmar com absoluta certeza, mas aposto dérreal que a maioria das citadas estão lá para o lado do que foi produzido depois de 1930. Dá aquela sensação de que antes desse período mulher não escrevia no Brasil, não dá? O que a gente sabe não ser verdade, considerando alguns nomes da lista da FUVEST. Vou chamar a atenção para um nome em especial, o da Júlia Lopes de Almeida.
Júlia Lopes de Almeida, que não é citada por Bosi (nem Massaud Moisés, nem por vários outros autores de livros obrigatórios que abordam a literatura nacional), é um nome que passou a ser resgatado nos últimos anos. A palavra é essa mesma, resgate – porque Júlia Lopes de Almeida era um nome relevante quando publicava, tem uma produção grande e diversa, mas que foi deixada de lado pela crítica (a mesma crítica que no fim das contas servirá de base para estudantes de literatura, vale ressaltar).
Quais os fatores que pesaram para o esquecimento dessa escritora? Eu vou contar uma anedota sobre a Júlia Lopes de Almeida que talvez explique pelo menos um desses fatores: o nome dela estava na lista de membros da fundação da Academia Brasileira de Letras. Foi vetado, porque ela era mulher. Em seu lugar entrou o marido, Lúcio de Mendonça. As mesmas pessoas que elogiavam sua produção1 são as que achavam que ótimo, opa, tudo bem escrever bem, mas a sociedade não está pronta para… (etc. etc. etc.).
E eis que passo uma graduação inteira sem ouvir falar dela. Na segunda vez em Letras2, ouvi pela primeira vez não através de professores, mas de apresentação de graduandas na Semana de Letras. E note: se puxar os dados de perfil dos estudantes de Letras, a maioria esmagadora do curso é de mulheres. Mas aí nós mulheres chegamos no curso de Letras com nossos olhinhos brilhando por causa de vários escritores que lemos na adolescência e nem notamos algo de errado quando nossos professores não falam de mulheres como nós. Não percebemos que a suposta universalidade do cânone é bem… ahm… masculina.
(Por que o ônus desse reconhecimento cabe às mulheres? Farei a pergunta sem apresentar uma resposta porque eu mesma não sei dizer, mas acho que fica um pouco naquela de que se não formos nós, não é quem está susse com o status quo que vai questioná-lo.)
Aqui vou deixar a sugestão de um artigo escrito pela Molly McGhee sobre a Dick Lit. Eu não concordo com toda a linha de raciocínio dela, mas o começo do texto, quando ela lista todos os autores que tinha lido aos 18 anos, era como se eu estivesse lendo minha formação como leitora. Minhas referências principais eram todas de Dick Lit, e mesmo minha lista de favoritos foi por muito tempo um Clube do Bolinha. Como é que vou perceber que há algo de errado na lista de livros que preciso ler para entrar na Universidade (e para sair da Universidade) se elas eram tão parecidas com minha própria lista?
E olha, eu sou leitora desde criança. O que a gente diz de gente que formará bagagem literária apenas com leituras obrigatórias de escola? Aí é que está meu ponto: se os professores são formados conhecendo tão pouco da produção literária de brasileiras, não é óbvio que nas escolas os alunos acabarão conhecendo pouco também? Que livros didáticos replicarão o material produzido por uma Academia que forma pessoas com textos de críticos que ignoram a produção de mulheres?
Eu duvido que tenha aluno que termine Ensino Médio sem ter cruzado a linha do tempo Caminha, Anchieta, Gregório de Matos e outros tantos nomes, então por que o faniquito com uma lista obrigatória só com nomes de mulheres? Não é como se esses alunos chegassem no vestibular sem qualquer referência dos autores que estão dizendo faltar na lista, a única diferença é que em um ano eles ampliarão o conhecimento de autores nacionais.
Para além disso, a lista tira o pó do cânone e bota editora para correr atrás de gente que está em domínio público, mas tinha sido esquecida. Facilita o acesso à obra até para quem não vai fazer vestibular para entrar na USP. É, no fim das contas, um não-problema, até porque a lista é temporária. Logo a gente volta para a proporção 2/10 e aí ufa, tudo parece normal de novo.
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Você nunca leu a Júlia Lopes de Almeida? Vou deixar aqui um link para Os Porcos, conto que faz parte do livro Ânsia Eterna, publicado em 1903.