Shark Heart (Emily Habeck)

A famosa “lista de livros para ler” é um bicho estranho: não tem um formato fixo, porque você pode passar meses esperando ansiosamente um título ser lançado e quando ele finalmente chega… fuéééém, você descobre que não está no clima para aquele livro.

Por outro lado, alguns que você nem sabia que existiam aparecem do nada e passam na frente de uma série de esperados (ou dos que já estão há tempos no kindle e estante). Foi o que aconteceu comigo quando li a sinopse de Shark Heart, romance de estreia de Emily Habeck (ainda sem tradução no Brasil). Eu nem pensei duas vezes e já fui colocar no kindle e comecei a ler, devorando em pouco tempo.

Shark Heart, que tem como subtítulo “Uma história de amor”, começa com Lewis e Wren se apaixonando e casando. Mais especificamente, abre com um diálogo do pedido de casamento, como se fosse um pedaço de roteiro de teatro mesmo. Note que ao contrário do que se esperaria (o casamento como a coroação, o ponto alto das histórias de amor), aqui ele marca apenas o começo da jornada. Isso porque depois do casamento, Lewis percebe algumas mudanças no corpo e após uma visita ao médico vem o diagnóstico: ele está se transformando em um tubarão branco.

Pois é, um tubarão branco. E por mais que eu realmente não conseguisse deixar de pensar no Lewis (especialmente quando a transformação avança) como o Tubarão-Rei do Esquadrão Suicida, a verdade é que mesmo que a história seja recheada de momentos doces e alguns até engraçados, ela é no geral bastante triste. Porque o ponto principal de Shark Heart é aprender a se despedir.

E a despedida aqui pode funcionar de duas formas. A mais óbvia é tomar a transformação em um animal como uma metáfora para uma doença terminal. Antes de Lewis, Wren quando ainda era criança também teve que lidar com a transformação da mãe – o processo lento, sofrido e que interrompeu a infância da protagonista, agora se repetindo em um momento que deveria ser de idílio. Como você se prepara para uma despedida que sabe inescapável?

A mudança de Lewis é inicialmente lenta – tão lenta que ele primeiramente esconde o diagnóstico de Wren, como se não contar pudesse adiar os efeitos do que estava sofrendo. E o cruel é que apesar de aos poucos virar um tubarão branco, a personagem continua com sua memória, consciência e intelecto intactos. Lewis é ainda o professor de teatro da escola, o sujeito cheio de sonhos que ama Wren. Lembrei de uma frase que meu pai falou para meu tio quando estava internado pela última vez por causa do câncer. Meu pai falou para ele: “o ruim é que meu corpo está morrendo, mas minha cabeça não“.

Considerando as novas limitações que encontrará, Lewis começa a reavaliar a vida. O desejo de deixar uma marca, de não ser esquecido fala alto, e ele começa a escrever uma peça de teatro (“uma história de amor sobre seguir em frente enquanto enfrentam uma grande e imediata transformação“) – logo o leitor começa a entender que os trechos de uma peça que dividem alguns capítulos do livro são a obra de Lewis. É interessante como ele usa a arte para se afastar da realidade, transformar-se em um observador. Por mais de uma vez o narrador fala em Lewis atuando dentro da própria vida.

E obviamente, Lewis passa a se preocupar sobre como sua transformação afetará Wren. Os pensamentos indo de como isso possibilitou que ele notasse coisas que passariam despercebidas (aquela coisa de “dar valor para o que tem”) até o inevitável diálogo interno sobre “permissão” para Wren ser feliz com outra pessoa quando sua transformação terminasse. O fato de gostarem tanto um do outro, mesmo quando as diferenças de personalidade criavam atritos, torna a ideia da despedida ainda mais dolorosa.

“Então, essa ideia de permissão, dar sua benção. Lewis queria que Wren fosse feliz um dia; feliz sem ele; feliz com Outro Alguém; Alguém gentil, bondoso, inteligente, divertido; Alguém que a amasse tanto quanto ele amou, talvez de formas que ele nem poderia, se isso fosse o que ela desejasse, precisasse, para ser feliz.

Esse pensamento sozinho foi um dos sintomas mais dolorosos até o momento, mas o mesmo pensamento era o marcador definitivo do que fazia seu amor verdadeiro.”

E como o ponto de vista da narrativa não é apenas o de Lewis, temos o outro lado, o de quem está acompanhando a transformação sabendo que não pode fazer absolutamente nada além de aliviar o desconforto causado por novos sintomas. Wren de certa forma também passa por uma transformação. Na realidade, duas: a primeira, quando a mãe sofre do mesmo mal que Lewis1 e faz com Wren passe a ser a pessoa prática, sem tempo para qualquer devaneio. A segunda é a de quando se torna a pessoa que se permite sonhar, justamente por causa da transformação de Lewis.

É daí que eu vejo o outro sentido da transformação do livro, não apenas como metáfora para doença, mas como mudança mesmo, e de como isso pode afetar um casal. Tem um trecho de Ela que volta e meia eu lembro, quando Samantha tenta explicar para Theodore a razão pela qual sente que eles devem terminar o relacionamento:

“É como se eu estivesse lendo um livro… um livro que amo profundamente. Mas eu estou lendo mais devagar agora. Então as palavras estão realmente distantes e os espaços entre as palavras são quase infinitos. Eu ainda consigo sentir você… e as palavras da nossa história… mas é esse infinito espaço entre palavras que eu me encontro agora. É um lugar que não é do mundo físico. É onde está tudo que eu nem sabia que existia. Eu te amo tanto. Mas é aqui que eu estou agora. E é isso que eu sou agora. E eu preciso que você me deixe ir. Por mais que eu queira, eu não posso mais viver em seu livro.”

No geral as experiências de um casal que se acumulam com os anos são mais ou menos as mesmas – mas conforme o tempo avança, é natural que algumas experiências diferentes se acumulem, e comecem a causar uma transformação em uma das pessoas ao ponto de o que fazia sentindo (os dois juntos) não fazer mais. E não é necessariamente falta de amor, é apenas um baú enorme de vivências que fazem daquela pessoa que está ali na sua frente, que essencialmente é a mesmíssima pessoa, outra pessoa.

(Um tubarão? Eu gosto da escolha porque é um bicho que parece ser tão diferente do que é Lewis, que pela personalidade seria muito provavelmente um Golden Retriever. Falei Golden Retriever e meu cérebro já pulou para o Mr.Peanutbutter e aquela fala da Diane acho que na quinta temporada? Vocês deveriam ver BoJack se ainda não assistiram. Ok, estou divagando.)

E tanto para a metáfora para doença quanto para a transformação, para a pessoa que fica a experiência é dolorosa porque, como já dito, resta apenas lidar com os desconfortos até o momento da separação final (e inevitável). E o que encanta no caso de Shark Heart é que a autora consegue falar sobre isso tudo com uma delicadeza enorme, para além do realismo mágico tem algo de poético em como ela conta a história.

De todo o livro talvez o único porém seja a parte que se concentra na mãe de Wren. Eu entendo que ela seja importante para que o leitor consiga entender quem é Wren no momento em que Lewis começa a virar um tubarão. Mas é um trecho que acredito ter se prolongado um pouco demais, e prejudicou um tanto o efeito da conclusão da parte anterior. Mas aí vem a parte final e resgata completamente o tom da primeira parte, com a chegada da personagem Margaret C. Finnegan (não vou entrar em detalhes para não estragar a surpresa de quem for ler, mas em alguns trechos eu ri alto enquanto lia).

É um livro encantador e uma excelente obra de estreia. Acredito que o fato de eu ter lido em agosto e ainda estar aqui pensando nele meses depois fale muito. Tenho certeza de que ficarei atenta aos próximos títulos da Emily Habeck, e quando chegar algo novo, será o primeiro na minha lista de livros para ler (aí se estarei no clima para ler eu já não sei, né. Afinal, a gente muda.)


  1. ela se transforma em outro bicho, e eu não vou dizer qual para não estragar a surpresa, porque foi um momento bem UAAAAT da história 

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