No qual Anica conta mais uma vez sobre sua história com Sandman, tece comentários sobre a adaptação da Netflix e tenta mais uma vez guiar novos sonhadores.
Começamos no Mundo Desperto
Eu sempre conto a história de como láááá em 1998 eu e meu irmão matávamos aula do cursinho para visitar a Gibiteca, onde líamos Sandman a tarde toda antes de voltar para casa – o retorno sempre com aquela sensação esquisita de estar no limite entre o Sonhar e o Mundo Desperto, depois de tanto tempo lendo.
O que eu nunca contei, e porque eu simplesmente não lembro mais (hahaha), é como foi meu primeiro contato com Sandman. Quem foi que deu o empurrãozinho no meu irmão para fazer a carteirinha na Gibiteca? Nós fomos lá já procurando Sandman? Realmente não consigo mais lembrar. Então no fim das contas, Anica está tendo uma relação com uma HQ. Só uma daquelas coisas. Um encontro casual que se tornou importante para ambas.
E aí para quem acompanha de lá para 2022, deu para ver muitas tentativas de publicação no Brasil, muitos formatos diferentes. Também vários títulos novos complementando o que saiu nas 75 revistas anteriores, incluindo aí o maravilhoso Overture. E o mais importante: nos 24 anos em que conheço Sandman, já ouvi falar muitas, mas MUITAS vezes de uma possível adaptação. Tanto que quando anunciaram a série pela Netflix, eu só acreditei que realmente iria acontecer quando saiu o primeiro anúncio de nomes do elenco.
Os nomes pareciam todos ótimos, fiquei especialmente empolgada com a escolha da Gwendoline Christie como Lúcifer e Mason Alexander Park como Desejo, mas né, como falar qualquer coisa sem ver pelo menos um teaserzinho sequer? Então botei o Sandman na gaveta de coisas legais que estavam para chegar e deixei para lá, isso até o TUDUM desse ano. Quando o Tom Sturridge entrou para apresentar o teaser, falando com a voz do Sonho (era a voz dele mesmo!! É como se saísse um balão preto com letras brancas da boca do ator!!), aí finalmente bateu a ansiedade para que chegasse logo o dia 5 de agosto, porque deu para sentir que existia a possibilidade real de ser algo muito bom.
Eu acabei assistindo ao primeiro episódio dois dias antes, o que só aumentou a curiosidade, porque o primeiro capítulo é um cartão de visitas perfeito para novos sonhadores, mas principalmente para os antigos que por tanto esperaram uma adaptação. Alguns quadros pareciam quase que recortados das páginas das HQs. Por exemplo:
E ao mesmo tempo que era tudo familiar (justamente por causa dessas cenas que copiavam fielmente o visual dos quadrinhos), era tudo diferente e novas possibilidades estavam abertas. E isso continua nos outros episódios e sim, foi como me se eu me apaixonasse novamente por Sandman. Você vai perceber em textos escritos por fãs dos quadrinhos que essa é uma frase recorrente, porque é o que de fato acontece. Desde a estreia eu estou aqui completamente obcecada por Sandman, tal como a adolescente lá de 1998.
Sobre a temporada como um todo, a Isabela Boscov comentou em crítica no Youtube que a primeira temporada parece ser duas séries diferentes e concordo: o que se vê até o capítulo 6 é algo espetacular. Mas depois do capítulo 6 (que traz dois capítulos que estão entre meus favoritos de todos os arcos: O Som de Suas Asas e Homens de Boa Fortuna), a série dá uma caída com a chegada da história do vórtex.
Considerando o décimo episódio, que é excelente (Stephen Fry como Gilbert está perfeito), acho que é mais um problema do material de origem (além, é óbvio, do nível altíssimo dos episódios anteriores): conversando com meu irmão pelo Telegram enquanto assistíamos falei para ele “Lembrei que não curto muito A Casa de Bonecas“.
(Abrindo parênteses aqui para lembrar de como tinha esquecido o tanto de gente com quem já compartilhei meu amor por Sandman nesses anos todos. Conversei com muitas pessoas no dia da estreia, comentando episódios enquanto assistíamos, como se fosse um grande evento único, todo mundo junto assistindo, mesmo que distantes. Um sonho de mil fãs de Sandman.)
Sobre A Casa de Bonecas. Não é dos melhores arcos de Sandman, embora seja a semente de outros arcos importantes (e excelentes) como Entes Queridos. Os destaques do arco, na minha opinião, são Homens de Boa Fortuna (que está no episódio 6) e Colecionadores (que se dilui em todos os episódios do 7 ao 10). Fora isso todo o plot do vórtex e yadda yadda yadda não são muito intrigantes nem na revista, a adaptação inclusive tem como mérito ter cortado bastante coisa e deixado tudo mais rápido.
Fico pensando aqui que dá a impressão de que achei a segunda metade ruim, e não é isso. É só que os episódios sete e oito parecem dar aquele tempo para respirarmos depois dos maravilhosos episódios cinco e seis. Tanto é que do nove para o dez a curva sobe de novo. Aliás, não acaba no dez, né. Eu comecei a escrever esse post no final de semana do lançamento de Sandman, na época não sabia que teríamos o décimo primeiro episódio – que com o episódio 5 e 6 são os meus favoritos.
Sobre o elenco (que deu muita reclamação antes mesmo da série ser lançada), eu não tenho qualquer crítica. A familiaridade da qual tenho falado tanto aqui é em parte possível pelas boas atuações: não basta ser alguém parecido. E convenhamos, muita coisa que funciona nos quadrinhos não funcionaria na tela (sim, aqui estou pensando especificamente naquela Morte pálida, note que nem a maquiagem do Sonho é tão carregada. O branco do papel não funciona na tela.).
No caso da Morte, por exemplo, a Kirby Howell-Baptiste consegue passar exatamente aquela noção de uma irmã mais velha legal, uma pessoa doce que todos gostaríamos de poder encontrar no fim da vida. A parte mais engraçada é que antes de anunciarem os atores da série, eu tinha na minha cabeça que a Jenna Coleman seria a Morte ideal. Ela entrou no elenco como Johanna Constantine e… estava perfeita. Sobre Desejo eu nem tenho palavras, dá até dó que tenha tão pouco da personagem nesse começo. Eu poderia ficar aqui um tempão elogiando um por um, então ficamos assim: gostei de todos.
Como já comentei antes, é legal que apesar da familiaridade, dos quadros que parecem recortados das páginas da HQ, ainda assim há mudanças que permitem mesmo ao fã que conheça a história de trás para frente ser surpreendido (eu arregalei os olhos na cena da Jessamy hahaha). Mais do que ser surpreendido, de ver algumas personagens sob um novo olhar. Eu vou citar o caso de Calíope porque está mais fresco na minha memória, não só o episódio, mas também uma releitura.
Calíope é como todo o resto da temporada: extremamente fiel, com algumas mudanças sutis. Tão sutis que confesso, cheguei a confundir momentos de mudanças com o que realmente aconteciam nas páginas de Sandman. Por exemplo, o Madoc falando que é um feminista, eu jurava que era coisa nova, fui ler e está lá ele dizendo a mesma frase, o que muda na série é que ele cita várias escritoras como referências
(Parênteses aqui: também achava que o Paul e o Alex lá do primeiro capítulo eram uma atualização, mas não, relendo dá para ver que embora não seja dito com todas as letras, fica evidente que eles são um casal).
Voltando ao Calíope. Tem o estupro, que não aparece na tela, fica só aquele arranhão no rosto do Madoc (uma decisão que funcionou tão bem!). Ou ainda, o reencontro de Morpheus com Calíope, que na adaptação ganha um tom triste, mas doce, o que não é possível no original porque nos quadrinhos o Sonho ainda coloca o orgulho acima de tudo, uma coisa meio piá de bosta que não vemos na série. As mudanças em sua maioria funcionam, inclusive alinhavam melhor a história (lembrando que o Gaiman nem tinha garantias de que escreveria para além da oitava revista).
Para o lado negativo das mudanças, eu sinto que Sandman aperta um pouco os freios quando o assunto é terror. É esquisito dizer isso quando temos um capítulo cinco bastante fiel ao 24 Horas, mas para quem chega ao universo de Sandman pela série e depois migra para as páginas vai entender: tem muito mais terror. Desde o Eterno Despertar lá no primeiro capítulo (que o Gaiman disse que chegou a ser filmado, mas ficou de fora na edição), ficou parecendo que sempre que era possível evitar o terror, ele foi evitado.
Senti falta da música também, que é algo bem importante em Sandman. Eu consigo entender o motivo (não é só questão de pagar os direitos, tem o problema de renegociá-los quando acontece o lançamento de novos formatos, vide o caso de Anos Incríveis que ficou muito tempo engavetado só por causa dos direitos da trilha sonora).
Mas é que música é parte do texto nos quadrinhos, não é só uma questão de som de fundo. Eu nunca tive curiosidade de procurar, mas tenho certeza que há listas nos Spotifys da vida só com canções mencionadas nas 75 revistas. Pensando alto aqui nos arcos que serviram de fonte para a primeira temporada, tem Dream a Little Dream of Me, Passengers, Men of Good Fortune e por aí vai. Para se ter uma ideia, o terceiro capítulo tem páginas e páginas onde o John Constantine escuta músicas que fazem menção ao Sonho, e em um momento ele ainda pergunta “Você já teve um daqueles dias em que ALGUMA COISA tenta te falar sobre ALGUÉM?”.
E tem os sonhos dos sonhadores também. Falei do Eterno Despertar do Alex, mas para além disso, nas HQs temos vários momentos em que podemos ver pedacinhos de sonhos e pesadelos das personagens (mais ou menos como vemos com os amigos de Rose Walker). E o Gaiman é bom demais inventando sonhos, seja no absurdo das situações, seja quando… sim, quando tende ao terror. Então é assim, na série aparece, mas não senti ainda que aparece o suficiente. É muito legal o quanto você pode revelar sobre uma personagem quando mostra um pedaço de seus sonhos.
E isso que comentei estraga a adaptação? De forma alguma. Até porque chega uma hora que você entende que não ver Constantine atravessando um corredor cheio de corpos derretidos em uma parede é um preço pequeno a se pagar para conseguir assistir finalmente Sonho e Hob Gadling se encontrando a cada 100 anos, a batalha no Inferno ganhando um visual que a HQ jamais conseguiria reproduzir, Matthew sendo engraçadíssimo, Coríntio lambendo sorvetinho (hahaha) ou ainda, Gilbert se despedindo e dizendo que foi um privilégio ser humano com a Rose.
É, no geral, o tom que predominou para mim: o reencontro com velhos amigos, ouvir suas vozes como quem tivesse passado um bom período só conversando por texto. Valeu a pena demais, e eu mal posso esperar para ver outros arcos adaptados.
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TUDO O QUE VOCÊ QUERIA SABER SOBRE SANDMAN, MAS TINHA MEDO DE PERGUNTAR PORQUE VAI QUE QUEM TEM RESPONDE É UM NERDOLA MALA
Desde o lançamento muita gente tem me procurado para perguntar sobre as HQs (é um erro, eu adoro falar delas e eu não paro) e eu sei que tem um post meu aqui falando sobre por onde começar a ler Sandman, mas vou aproveitar para dar umas dicas para quem assistiu e quer saber mais sobre o material original. Vai clicando nos links aí sem medo de ser feliz.
Para começar: sempre que alguém mencionar “arco”, pense que é um capítulo que inclui um determinado número de revistas. Para ficar mais claro, tem o primeiro arco que é Prelúdios e Noturnos, que começa com O Sono dos Justos e termina em O Som de Suas Asas. As 75 revistas originais estão divididas em 10 arcos (já vou listá-los, aguenta aí).
Sandman chegou no Brasil através da Editora Globo entre 1989 e 1998. Ela não vendia encadernados, era uma revista de cada vez, assim como era vendido no exterior. Anos depois houve uma tentativa de lançamento parecido através da Tudo em Quadrinhos que não vingou.
No começo dos 2000 a Conrad começou a vender os arcos em formato encadernado (ou seja, você compra um livro chamado Prelúdios e Noturnos que tem o conteúdo das oito primeiras revistas da série). Um pouco depois, através da Pixel e logo depois da Panini chegou com a Edição Definitiva, que ganhou um tratamento especial e as cores foram renovadas (eu falo mais disso nesse post aqui). A Edição Definitiva é dividida em quatro volumes, cada um com mais de um arco (o primeiro, por exemplo, tem Prelúdios e Noturnos, A Casa de Bonecas e Terra dos Sonhos, que é justamente o material de origem da primeira temporada da série).
No exterior tem ainda The Annotated Sandman e The Sandman Omnibus, mas eu vou partir do princípio que nessa economia ninguém tem dinheiro para importar esses dois, então faz de conta que não existem. Tem ainda a edição especial de 30 anos, que era vendida pela Panini como os encadernados da Conrad (um arco de cada), e agora a Panini está vendendo uma caixa com todos os volumes dessa edição comemorativa juntos (mas de novo, quem é que tem dinheiro para largar oitocentão em gibi nessa economia, né, minha gente).
Está confuso e pensando, meu deus, eu só quero saber por onde começar? Ok, a primeira dica é: se você não tiver algum amigo que te empreste Sandman, tente correr para os sebos antes de os preços subirem. O melhor negócio no momento é garimpar os quatro volumes da Edição Definitiva, porque além de ser mais fácil de conseguir (são quatro livrões, mas ainda assim, apenas quatro), eu já dei uma olhada no Estante Virtual e estão vendendo por preço abaixo do que paguei os meus na época que foram lançados.
A ordem básica de leitura é:
Prelúdios e Noturnos
A Casa de Bonecas
Terra dos Sonhos
Estação das Brumas
Um Jogo de Você
Fábulas e Reflexões
Vidas Breves
O Fim do Mundo
Entes Queridos
O Despertar
Como já mencionei, os dois primeiros foram o material da primeira temporada. O episódio 11 tem dois capítulos do terceiro arco, Terra dos Sonhos. Depois das 75 revistas a Vertigo continuou publicando de quando em quando títulos relacionados ao universo de Sandman, com Destino como protagonista, tem a Morte, tem Pequenos Perpétuos, Thessaly, Coríntio, tem de tudo.
A maioria não faz a menor diferença você ler ou não, a maior parte nem foi escrita pelo Gaiman, então fica aquela coisa mais “Ok, você está realmente viciado nesse negócio, tome aqui um tiquinho de Sandman para não dar crise de abstinência”, mas desses títulos que saíram depois da publicação das 75 revistas, dois são importantes como complemento para as histórias lidas nos arcos anteriores (e foram escritos pelo Gaiman): Noites Sem Fim e Overture (que aqui no Brasil saiu como Prelúdio). Os dois títulos são vendidos na tal da edição comemorativa de 30 anos da Panini.
Outro título que aparece bastante nas coleções e também tem uma Edição Definitiva é o da Morte. O volume conta com todas as histórias da Morte escritas pelo Gaiman, seja em capítulos de Sandman (como O Som de suas Asas) seja em séries próprias, como o Morte: O Grande Momento da Vida, que tem arte do Chris Bachalo, minha Morte favorita).
Tem também Caçadores de Sonho, uma história linda linda linda ilustrada pelo Yoshitaka Amano. Não é diretamente relacionada ao material principal, mas tão lindo o trabalho do Amano que vale a busca para ter na biblioteca.
Preciso saber mil coisas antes de ler? NÃO. Se alguém te falar que Sandman é obra para poucos, coisa para iniciados ou blablabla só acene e vá embora, porque é bobagem. Peloamordedeus, eu li pirralha com 17 anos e uma bagagem cultural ainda bem limitada na época e me apaixonei. Parte do encanto é justamente ir pescando as referências e indo atrás de outras coisas. Hellblazer, por exemplo, eu só conheci porque gostei do John Constantine naquele capítulo 3 de Prelúdios e Noturnos. E se você ler e não gostar (ou assistir e não gostar), tá tudo bem, não vá cair no papo de que só seres iluminados gostam de Sandman (até porque o que a choradeira sobre a escalação do elenco deixou bem evidente, é que tem muito idiota que gosta também. Fazer o que.)
No mais, se você gostou muito da série, procure pela tag The Sandman no Tumblr. Eu acho engraçado (e sintomático) que uma rede social já meio abandonada seja um lugar com tanto fã de Sandman. O mais curioso: mesmo antes de sequer falarem em adaptar a série para a Netflix, o Gaiman já tinha uma presença constante lá. Ele responde todo mundo e comenta bastante sobre o processo de criação, então vale a pena acompanhar nem que seja a conta dele.
Acho que é isso. Sinto saudades do fórum do Sonhar, mas entendo que é um formato que hoje em dia só resiste na base da teimosia (tipo blogs?). Mas na falta de um ponto de encontro, se quiser conversar sobre Sandman é só me procurar por aí – como disse antes, tá aí um assunto do qual eu realmente não consigo parar de falar.