Parece quase uma comédia romântica imaginada por Tim Burton, não? Mas embora The Regrets seja muito engraçado em vários momentos, ele surpreende pelas escolhas da autora, e ao invés de ser uma fantasia sobre um casal improvável, é uma história que lida (entre outros tantos temas) sobre relacionamentos nos tempos atuais: das marcas que deixamos nas pessoas que passam em nossas vidas, da bagagem que carregamos para novos relacionamentos, da dificuldade de romper quando é preciso.
A primeira surpresa é Thomas, nosso “herói”. Se ainda pensarmos no livro como uma comédia romântica, há uma série de características que se esperam da personagem, certo? Um evento sobrenatural no passado o marcou para sempre, e Thomas vive desafiando a morte para tentar repetir a experiência. O primeiro capítulo é todo narrado pela personagem, então é fácil sentir uma empatia inicial. O problema é: Thomas é um babaca. E isso já fica claro antes mesmo de Rachel aparecer na história. Não só pela forma como julga pessoas da sua (ex)vida, mas as que encontra nesse limbo burocrático.
Um momento em especial parece apitar o alerta. Quando já está entediado por causa da situação em que se encontra, Thomas começa a sair à noite e fingir ser outra pessoa em bares: médico de emergência, repórter de guerra, escultor. Uma noite, mentindo ser um médico no Afeganistão, engana uma garota que sequer lembra o nome. Quando percebe que ela caiu na conversa, percebe o quanto seria fácil transar com a garota, e então pensa, cheio de raiva: “Do it, hate-fuck this girl with her intact pussy nd her dumb gaze, fill her up with the blunt savage cock of death.” Não tem como não ficar em alerta depois de passagens assim.
Então, quando ele conhece Rachel, o momento é ao mesmo tempo doce mas naquele tom de “sai dessa, amiga, é cilada”. O livro guia que recebeu do escritório é bem claro sobre Thomas não poder se envolver com nenhum vivo (porque isso incorreria em “regrets“). Mesmo assim, ele passa a esperá-la todo dia no ponto de ônibus. É aí que a narrativa muda para Rachel.
Também contrariando as expectativas, Rachel não tem nada do esperado de uma heroína de comédia romântica. Um namoro mais sério nos tempos de faculdade, depois um monte de casos bem desastrosos e a certeza de que simplesmente não havia alguém que conseguisse sustentar por muito tempo o que ela tinha em mente como o ideal, o “daydream”. É engraçado que a visão que Rachel tem do amor (sua completa impossibilidade) contraste com essa mania do “daydream” (algo que ela faz tão constantemente que chega a ficar com medo que não consiga distinguir sonho de realidade em algum momento). Quando percebe Thomas no ponto de ônibus, a atração é imediata, mas há uma tentativa de evitar que o que ela imagina que seria uma relação com ele passe a ser real. Depois, vencida, acaba tomando a iniciativa.
É claro que esse primeiro momento é recheado de momentos até bonitos (e românticos), como Rachel conversando com Thomas em código morse, através de toques em sua mão. Rachel aprendera código morse na infância, através de um livro dos tempos de guerra, que fez com que ela basicamente só soubesse slogans contra a campanha alemã:
By the time we disembarked at our stop, the one from which we’d begun our journey, so much had changed. U-boats lurked beneath calm Atlantic waters. Dark Teutonic forests rippled with threat. Sap rose in our American limbs. Our bombers lay waiting, loins tingling with gunpowder, noses toward the future.
Tem também a ideia de “esquisitice complementar”, que de alguma forma a prepara para aceitar o fato de que está se relacionando com um homem morto. Aqui as coisas começam a ficar ainda mais amalucadas, porque depois da primeira noite que passam juntos, Rachel percebe que Thomas tem um buraco onde deveria estar o coração. É bem interessante que seja justamente esse o primeiro lugar do corpo de Thomas que começa a desaparecer.
O processo de desaparecimento de Thomas marca também o de Rachel, ainda que metafórico. Ela deixa de encontrar os amigos, evita conversar com pessoas mais próximas porque simplesmente não sabe como falar de sua situação. O curioso é perceber a diferença da noção dos fatos quando a narração muda novamente para Thomas. Porque Rachel sugere que nunca esteve tão viva quanto no momento em que passou a se relacionar com Thomas. Mas ele é bem claro:
The more I pleasured and surrounded her, the more of her vitality I absorbed, the more I seeped into her: my memories, my darkness, my regrets.
Ele SABE que está a prejudicando, e mesmo assim insiste na relação. O truque de Bonnaffons no final das contas é falar sobre um relacionamento tóxico sem em nenhum momento usar a expressão. Mas aqui eu já estou avançando e pulando o capítulo que vem logo depois que Rachel e Thomas ainda vivem o ponto alto da relação, mesmo com Thomas já desaparecendo por completo. Quando o leitor imagina que voltaremos para o ponto de vista de Thomas, eis que surge um capítulo narrado por… Mark.
Mark? O sujeito é citado brevemente por Rachel, é justamente o relacionamento mais longo que ela vivera. O curioso do capítulo de Mark é como um cara que claramente não significou nada para Rachel (pelo menos se considerarmos o modo como ela descreve sua relação), ter sofrido tanto com o fim, ter sido tão apaixonado. O capítulo de Mark é cheio de momentos engraçados (especialmente os que envolvem a Zoe), mas o tom que predomina é o de tristeza: a noção de que pessoas que foram tudo para nós em algum momento de nossas vidas simplesmente não sentirem o mesmo. Ou ainda, de algumas vezes nem fazermos ideia do quanto podemos marcar uma pessoa. De certa forma, durante os anos em que estiveram separados, Rachel assombra Mark.
Seguindo para o capítulo de Thomas, todos os alertas iniciais ficam bem evidentes. Carente de contato físico, Rachel passa a se relacionar com outros homens. O reencontro com Mark faz com que Thomas descubra que não é só o amor que faz com que ele se mantenha entre os vivos, a raiva também – embora eu tenha aqui que muito do que eles tratam como amor ser apenas sexo, e daí a raiva que sente pelo mero toque de Rachel na mão de Mark. Não é sobre o que os dois tinham vivido, não é pela possibilidade de “traição”. É só que Mark pode ser algo que ele não pode mais. “His touch may erase my own“, ele diz em determinado momento. E aí resolve começar a assombrar tanto Mark quanto Rachel.
Hauting is not confined to the realm of ghosts. It is a state of avoidance and obsession. We haunt because we are haunted. (…) Every individual love story takes place within a larger fabric of desire, stretching out infinitely, pulled from every possible direction. When you think about it, it’s miraculous that anyone sticks together at all.
E quando o que pensávamos ser o herói da comédia romântica diz tirar um grande prazer do sofrimento de Rachel, fica evidente que o relacionamento tem que acabar, e Thomas é “exorcizado”. Voltando para o fantástico, há toda uma explicação envolvendo auras, choro ao estilo Exorcista (tenta imaginar), mas aos poucos Rachel vai se curando. E não só do relacionamento com Thomas, mas passa a ver que ela não era muito diferente de um fantasma, se negando a de fato “começar” sua vida. Se reaproxima dos amigos, toma as rédeas, finalmente.
É um final até um tanto calmo e normal se considerar tudo o que acontece anteriormente. Fico pensando no termo “regrets”, que o livro-guia nunca explica o que significa para uma pessoa como Thomas, mas que no dicionário encontra os significados que vão desde a tristeza pela morte de alguém, passando pelo arrependimento por erros cometidos e chegando em… tristeza criadas por circunstâncias que vão além do controle ou poder de reparação de uma pessoa. E considerando o que acontece entre Thomas/Rachel/Mark, tudo ali poderia ser marcado pelo “regret”, como bem avisa o guia. O que Bonnaffons faz é torcer mais uma vez o significado e transformar o “regret” em uma marca de experiência, de aprendizado. Seja lá qual foram as dores que sentiram com o que viveram, aquilo não foi em vão. Como fica claro no que diz a amiga de Rachel, após comentarem sobre uma mancha de incêndio no teto da cozinha:
Secretly, I kind of like it, though. Like, what if everything that happened in life left an obvious mark? I mean, everything important. Like, when you’re a kid, your parents mark your height on the wall. You can look back and be like, oh shit, I’ve grown this much this year. When you’re older, it’s harder. You can’t tell when you’re making progress. And everyone tries to hide what’s happened to them. It’s confusing. But when you think about it, isn’t all experience just experience?
Ignore os ‘like’, ‘like’, da amiga – os narradores são bem mais articulados, aliás, a prosa de Bonnaffons é uma delícia de ler. Tanto que acabando o livro, eu acabei me sentindo meio assombrada por ele? Como se não conseguisse seguir para outro livro se eu não viesse aqui comentar o que li. E olha que o “outro livro” em questão é o novo da Jenny Offill.