Como já bastante comentado, Gerwig tomou algumas liberdades em sua adaptação. Eu não li o livro, não posso falar sobre as diferenças, então vou comentar aqui sobre minha visão entre a versão para o cinema de 1994 e a atual, sendo o ponto-chave a personagem Amy. Ao deixar de lado uma narrativa linear, Gerwig nos oferece uma visão diferente da irmã March: você pode até não morrer de amores pela personagem, mas há uma possibilidade de compreendê-la que não está presente na versão mais antiga.
Na versão de 2019, temos duas linhas temporais se mesclando, o que inicialmente parece unir o passado das irmãs March (retratado com cores mais quentes) ao momento mais recente de suas vidas (cores frias). Na conclusão, em um diálogo entre o editor e Jo, ficamos sabendo que na realidade o que aparece em tons mais quentes não é exatamente o passado das irmãs, mas a versão ficcionalizada desse passado, retratada no livro escrito por Jo. A dica é a grande celebração em família, que além de apresentar as já mencionadas cores quentes, entre as várias personagens no melhor estilo “fim de novela” mesmo o professor Bhaer está presente. É o “final feliz” que o editor pediu, para agradar o que ele via como o público do livro de Jo.
O final real do filme (em cores frias) é uma Jo solitária, abraçando seu livro. O ponto alto de sua vida, o momento em que ela consegue realizar seu sonho, não é sobre com quem ela terminou, mas ela ter conquistado seu sonho. Mas mesmo com essa nota positiva, há algo que torna o desfecho um tanto melancólico: seu grande sonho foi realizado porque um homem o permitiu e, como já mencionado, não o fez por apreciar o que leu, mas porque suas filhas apreciaram. E Jo ainda teve que ceder mudando o final para o que ele pensava ser mais adequado. Assim, Gerwig se recusa a entregar o final feliz que se esperava, deixando o público com algo no mínimo agridoce.
Uma pausa no filme e voltando ao artigo da Time. A hipótese do artigo aponta para algo que já tem sido bastante comentado, sobre a falta de diversidade entre os membros da Academia e, consequentemente, a falta de diversidade entre os indicados. Mas o texto vai um pouco mais além, lembrando que para os indicados de cada categoria, um ramo específico da Academia vota. Para fazer parte do ramo dos diretores, as regras dizem que a pessoa deve ter: pelo menos dois créditos de direção, sendo que pelo menos um deve ter passado nos cinemas nos últimos 10 anos. Os filmes também deve ter uma qualidade que (na opinião do comitê executivo) reflita os padrões da Academia. Se o diretor tiver apenas um crédito, ele ainda pode fazer parte do ramo se for indicado para Melhor Direção, Melhor Filme ou Melhor Filme Estrangeiro. Finalmente, há a possibilidade de a Academia abrir uma exceção baseada em “mérito especial”.
Como o próprio artigo aponta, a indústria por si só torna difícil para mulheres fazerem parte do ramo dos diretores. Para se ter ideia, ainda tomando informações do texto da Time, apenas 4% de 1200 filmes entre 2007 e 2018 foram dirigidos por mulheres. QUATRO POR CENTO. E dessas, apenas 17,4% dirigiram outro filme depois do primeiro. E não é absurdo dizer que a regra de dois créditos em dez anos seria a regra mais objetiva de entrada, todas as demais acabam dependendo da opinião de um grupo que em sua maioria ainda é composta por homens. E então é impossível não lembrar do diálogo entre Laurie e Amy quando ela revela que desistiu de seguir o sonho de ser pintora porque não é genial, apenas talentosa:
LAURIE
What women are allowed into the club of geniuses anyway?
AMY
The Brontes?
LAURIE
That’s it?
AMY
I think so.
LAURIE
And who always declares genius?
AMY
Well, men, I suppose.
LAURIE
They’re cutting down the competition.
Homens como o editor de Jo March, que não veem em uma história centrada em mulheres algo relevante. E talvez esse fosse o ponto fundamental da discussão: mais do que a paridade de gêneros dos membros (que, vale ressaltar, a Academia tem buscado nos últimos anos), fica a dúvida de por que para mulheres histórias com protagonistas homens podem ter valor “universal” e despertar o interesse, mas o contrário não ocorre quando o público é formado por homens e a história é sobre/feita por mulheres. Porque no final das contas é isso, não é nem sobre indicar ou premiar – a falta de mulheres nessa última etapa são só o sintoma de algo pior, a falta de interesse na voz e no olhar feminino.
Mais uma vez vida e obra se confundem e, vejam só o que reportou a Vanity Fair: que vários eleitores da temporada de premiação recusaram convite para assistir Adoráveis Mulheres porque achavam “que não era para homens”. Sempre que falam de uma história “não ser para homens” eu penso no Nick Hornby. Você pega um livro como Alta Fidelidade e é basicamente um cara tentando superar o fim de um relacionamento – não é um enredo muito diferente de muito livro que ganha capa cor-de-rosa e tag “chick-lit”. Mas é que foi escrito por um CARAAAAA, né. Acabamos voltando para mais um diálogo do filme, dessa vez entre Amy e Jo, quando Jo comenta sobre o livro que está escrevendo:
JO
I started something… but I don’t think it’s very good.
AMY
Everyone likes what you write.
JO
(pointedly)
No, they don’t.
MEG
I do.
JO
It’s just about our little life.
AMY
So?
JO
Who will be interested in a story of domestic struggles and joys? It doesn’t have any real importance.
AMY
Maybe we don’t see those things as important because people don’t write about them.
JO
No, writing doesn’t confer importance, it reflects it.
AMY
I’m not sure. Perhaps writing will make them more important.
E nessa eu fico com a Amy. Pode parecer frustrante a falta de reconhecimento do trabalho de Gerwig, mas vou repetir aqui que as premiações são a última etapa de um processo bem maior. E, infelizmente, em 2020 ainda estamos tentando lembrar que filme sobre metade da população mundial não é filme de nicho. E talvez o único jeito de deixar isso bem claro é continuar contando histórias, por mais que os Dashwoods da vida achem que sirvam apenas para suas filhas.
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Só para deixar registrado, minha lista de filmes do Oscar ficou assim:
- Parasita
- Adoráveis Mulheres
- Jojo Rabbit
- 1917
- História de um Casamento
- Era uma vez… em Hollywood
- Ford vs. Ferrari
- O Irlandês
- Coringa
Achei interessante seu apontamento final ser sobre a dificuldade, anterior às premiações ou seleções de filmes a festivais, de certos filmes serem feitos. Num mundo ideal, todos teriam direito a voz e o julgamento seria puramente em termos qualitativos, estéticos. Tanto no processo de produção de um filme como na sua premiação. E nesse aspecto, o de qualidade, acho difícil tirar qualquer um dos indicados em direção em prol de algum outro, ao menos em se tratando de filmes presentes nas indicações em geral do Oscar. E mesmo vc, aparentemente, não tendo gostado muito de Joker, é difícil também de negar seus fortes nessa categoria. Ou, se fosse pra tirar Joker de direção, por mim teria de ser em lugar de um The Lighthouse, mas pra isso seria difícil, dado à categoria de filme bem nicho em que ele se encaixa- isso é filmes estrangeiros. Foi uma surpresa bem grata ano passado o cara de Cold War receber uma indicação!
Já melhor filme eu tiraria Ford V Ferrari dali e colocaria The Farewell por exemplo, um filme imensamente melhor, mas, fazer o que? O Oscar no final é tudo muito mais popularidade e melhor campanha do que qualidade em si. Nisso prefiro Cannes, embora aqueles jurados lá as vezes decepcionem tbm – cough cough I, Daniel Blerghhh cough cough
Bem, infelizmente o único que não vi dos indicados a melhor filme ainda foi justamente Little Women – só há uns screeners bem ruins e no cinema só passa em poucas sessões e longe….
Mas por enquanto fico assim
Once upon a time… in Hollywood
Parasite
Marriage Story
The Irishman
Joker
Jojo Rabbit
1917
Ford V Ferrari
Abraços
Ah, mas em geral fiquei super feliz com a lista de indicados desse ano, principalmente a de melhor filme, com só Ford sendo o menos arriscado dali, não que eu tenha odiado o filme, mas é só que achei as cenas de corrida muito boas presas no meio de um filme no todo com problemas de ritmo. E embora não tenha curtido muito 1917, e acharei meio chato se ele ganhar melhor filme, tem muita coisa boa em aspectos técnicos ali pra apreciar…
As categorias técnicas foram muito boas tbm – até The Lighthouse merecidamente ganhou uma menção em fotografia. Acho que o aspecto mais desinteressante em geral foram as indicações de ator, digo as quatro… meio previsíveis, e o resto alguns que parece terem entrado mais por campanha… mas enfim, em geral, um excelente ano pro Cinema que se refletiu muito bem nas indicações.
Só queria que Beanpole tivesse entrado na estrangeiro – não sei muito sobre aqueles lá fora o Almodóvar o bong e o Les Mis, então talvez os outros sejam até melhor? Mas adorei aquele filme russo… de qualquer maneira Parasite vai ganhar mesmo… e deve!
Eu gostei de todos os indicados, a seleção não é ruim, aliás, está BEM melhor do que a do ano passado – muito mais títulos que resistem ao teste do “você vai lembrar desse filme em dez anos?”, se é que você me entende. Claro que sempre fica a sensação de que poderia ter entrado uma coisa ou outra, mas aí quando você vê que tem eleitor recusando assistir determinados filmes porque acha que será “coisa de mulher”, dá para imaginar porque alguns mais diferentosos acabam ficando de fora e ganhando reconhecimento em outras competições mais independentes tipo o Spirit Awards (as atuações do Pattinson e do Dafoe ganharam reconhecimento lá, The Farewell para melhor filme, Midsommar na cinematografia, etc).
No fim das contas é aquilo: a gente se diverte, gosta e sabe da importância (eu duvido que a Greta teria luz verde para o Little Women não fossem as indicações de Lady Bird), mas a gente sabe que o Oscar não é o único fator de formação do cânone. Não precisa nem voltar muitos anos no passado, é só pegar a lista do ano que O Discurso do Rei ganhou melhor filme e pensar se já não dá aquela bugada no cérebro pensar que O Discurso do Rei ganhou quando tinha A Rede Social e Inception na mesma categoria. Que tinha The Kids are All Right, que é um filme fofo e bacana (e acho que até falei dele aqui) mas vá lá, eu nem lembrava mais dele.
É. Entendo. É bem ridícula mesmo essa reação. Mas tbm Claro que, por mais que se trate de um filme, e portanto mais acessível (digo em relação mesmo ao tempo gasto) do que um livro por exemplo, ainda assim as vezes não dá tempo de ver tudo e algumas hierarquias de prioridade acabam entrando na história. Pra mim, no entanto, isso, como mencionei antes, vai pela questão da qualidade. Sinceramente pela história em si Little Women não me atrairia, então não é o tipo de filme que eu veria todas as milhares de versões feitas (e tbm não sou muito a fim de ler o livro) mas sou doido pra ver (e estou baixando inclusive) a versão com a Winona Ryder pq adoro ela e ouvi dizer que é um ótimo filme, e agora a Greta já sou tão íntimo do trabalho dela desde antes de assumir a cadeira de diretora, mas some-se a isso essa escolha ousada para com a estrutura, e as atrizes (Florence Pugh <3 Saoirse <3 Laura Dern <3 todas elas?) que eu PRECISO conferir. No final é isso que vai me chamar a ver um filme, o nível de elaboração que ele levou em sua filmagem, o nível de talento envolvido, tudo isso passa pra frente de mero plot — é a comunicação dele que importa. Mas infelizmente algumas pessoas se atém a seus preconceitos e nem buscam saber se tem algo ali em um certo projeto que, por mais que a princípio não te interesse, se torna interessante pelo valor artístico em si.
E isso vale pra tudo. Eu mesmo tbm não tenho muito saco pra filme de guerra, mas esse coisa toda técnica me chamou a atenção, e como ignorar um filme tão falado como 1917?, e vi — e achei ele meio fraco em roteiro, meio gimmicky mesmo, mas de um jeito ou de outro foi um apelativo que me direcionou a ele.
Agora meus dois mais esperados são A Hidden Life e Retrato de uma menina em fogo, dois filmes muito diferentes mas (ao que tudo indica) com aquele tipo de direção super segura e forte que eu curto muito – agora pelo que ouvi falar, Retrato seria uma entrada perfeita para melhor diretora, mas aí já é puxar demais pro Oscar…
Eu tenho boas lembranças da versão de 94, mas eu lembro de me sentir meio traída por algumas decisões de personagens (nem vou comentar aqui porque você ainda vai ver), que achei bem justificáveis na versão nova. Eu tenho vontade de ler o livro, aliás, ando com uma vontade enorme de colocar uns clássicos em dia (tem pouco tempo vi Far from the Madding Crowd e adorei, queria ler o livro tb), mas é aquela coisa, não dá para ler todos os livros, nem ver todos os filmes. A gente tem que ficar em paz com a ideia de que não vai dar conta de ver tudo, mas de vez em quando tem que dar aquela checada para ver se não entramos na zona de conforto. Eu quase não assisti o Perdi meu corpo, fiquei pensando “ah, não, animação, deixa para lá”, mas foi uma experiência bem diferente e bacana.
Outro que quase não vi foi o 1917, pelo mesmo motivo que você. Eu tinha certeza que odiaria 1917, também não suporto filme de guerra. Acabei assistindo porque foi um que o Fabio topou ver junto. Fiquei brincando no começo que os soldados eram hobbits em uma MISSION! QUEST! THING! (https://www.youtube.com/watch?v=PbLlxxj-LN8), mas acabei mordendo a língua porque o filme me conquistou. São coisas batidas, repetidas e não tem nada de novo e é até injusto com o tanto de gente fazendo coisa nova, mas ao mesmo tempo é tão bonito, tão redondinho. Eu nem acho que o plano sequência falso seja o que o filme tem de melhor, só achei visualmente bonito mesmo – cenas como aquela do soldado atravessando os escombros de uma cidade no meio da noite, só com a luz das bombas iluminando seu caminho, por exemplo.
Ah, tbm tenho tido muita vontade de ler Far From the Madding Crowd recentemente!
Ainda não li nenhum Hardy.
E Little Women, não sei, mas pelo que li, e posso estar errado, parece se sustentar mais pela estória agradável do que por uma escrita memorável e desafiadora…
Diferente de Austen, por exemplo, que estou lendo pela primeira vez, com Emma, e adorando! Faço a comparação porque imagino muitos se afastando de Austen pelo motivo do cara lá que não quis very little women, mas com ela e tudo sobre a escrita carregada em ironia e aquele humor britânico característico, e, nesse livro ao menos, é tudo focado nas interações entre os personagens, nos limites de perspectiva, no quanto Emma em específico, tem suas ideias tão certas e falha em ver a realidade ao redor, e os diálogos! De novo cheios de ironia e wit, que são até um pouco exigentes as vezes mas recompensam muito – em praticamente cada página tem uma pérola, e já ri muito com o livro (um dos que mais ri foi – e não sei se vc já leu ou viu algum filme – mas foi o longo ( e bota longo nisso, Austen adora estender seus diálogos quando um escritor contemporâneo preferiria a concisão, mas eu super curto) rant de Mr John Knightley sobre ter de sair na neve pra passar a véspera de natal na casa de uns amigos de família — é tão rabugento mas ao mesmo tempo dá pra se conectar com ele rsrs e todas as vezes que a Emma é meio grossa que é engraçado haha enfim é um deleite…
E sim. Aquela cena com as luzes em 1917 foi muito bonita mesmo! Acho que meu problema em geral foi que achei esse formato de uma tomada só no final acabou funcionando contra o filme. Acaba sendo muito longo pra história rasa que tem, e não achei que em muitos momentos o suspense que quiseram criar funcionou – por ex a cena logo no início quando os dois rapazes pastel na missão, andando em terras ermas por um longo tempo e vc sabe que ali não vai acontecer nada, eles não vão passar por nenhum perigo, e de fato é o que acontece. E no final eu acabei ficando com um uma indiferença em geral – por conta desses muitos espaços nulos do filme… esse era um que tinha que ter uma montagem tradicional e ter no máximo uma hora e meia…
Eu tinha preconceito sobre a Austen justamente nessa linha. “Ai, história de mulezinha, é só novelinha”. Essa que é a coisa mais assustadora desse negócio de ter apenas um único tipo de referência sobre pessoas que contam histórias (seja em livro, seja em filme). A gente se habitua a achar que só aquilo é “universal”, a enxergar apenas aquela visão como uma possibilidade artística. Tem um negócio que eu ia citar no post mas acabei esquecendo, uma fala de I Love Dick que eu adorei e que no fim das contas resume muito bem a situação: “Can I ask you a question? Have you heard of Maya Deren? Filmmaker? Yeah, she’s supposed to be, like, the most important female filmmaker and, you know, to be… God’s honest truth… I think she’s boring as… as shit. It’s like impenetrable. I can’t… There’s no way I can even get through one without wanting to gouge my eyeballs out, and she’s considered, like, you know… Do you know what I like? Spielberg. Spielberg. I like Scorsese, Cukor… Coppola. Francis Ford. Not Sofia! Sofia Coppola with the cute, perfect, chestnut highlights. Ooh, hey, how’d get that brunette? Lot of money. You know, I’m beginning to think there’s like, no such thing as a good woman filmmaker. It’s like, how can you be if you just… like, are raised to be invisible? I’m invisible. I mean, looked at. I mean, it’s a wonder that any woman can think herself as an artist.”