E então eu mal começo a ler o livro e percebo com espanto que mais do que uma história sobre o sumiço de Beatriz, é uma verdadeira declaração de amor ao trabalho do tradutor. É através da figura de Emma (a tradutora norte-americana que vem correndo para o Brasil tentar descobrir o paradeiro de sua autora) que aos poucos questões sobre tradução vão sendo levantadas – e não, não é de forma sutil. O paralelo entre a vida da personagem e seu ofício é escancarado, como quando fotos dela com o filho de Beatriz aparecem na mídia, e o narrador comenta:
Neither of them had mentioned Emma’s appearance in the photos as well, which was a relief, though also insulting and dismissive – a conflict of emotions that was standard fare for a translator.
O romance lembra o tempo todo com essa questão de aparecer/desaparecer – aquilo que tanto se exige do tradutor, que ele suma do texto e deixe apenas a voz do autor. O narrador brinca com essa mistura de dilemas do tradutor e os dilemas vividos por Emma enquanto procura Beatriz, seja na relação com sua autora (“but once again there was no obvious spot for her to put herself“) ou mesmo de sua vida pessoal, como em um trecho em especial quando fala sobre “domestication” – não sei se o termo é o mesmo empregado em Português, mas o narrador começa a explicar do que se trata (uma mudança na frase que auxilia a compreensão do leitor estrangeiro – trocar o nome de uma fruta exótica para uma mais familiar, por exemplo) e então conclui “The problem with domesticating things this way, however, was the possible misplacement of truth“.
Porque logo descobrimos que Emma não está no Brasil apenas para encontrar Beatriz. A busca por sua autora é uma desculpa para fugir de Miles, o namorado que passou a falar em casamento mas com quem ela não consegue imaginar uma relação a longo prazo. Uma desculpa, assim como no final das contas o sumiço de Beatriz (e as ameaças do agiota) são uma desculpa para dar um lugar para o tradutor finalmente aparecer. Novey dá o protagonismo para uma tradutora, reconhecendo assim sua importância.
Vale chamar a atenção também para o papel de Rocha, o editor, um trabalho que assim como o do tradutor costuma se dissolver na presença do nome do autor. É lindo o modo como Novey descreve (através do que seria uma recontagem de uma obra de Beatriz) o papel do editor, ou ainda, de como ele transforma não só uma obra, mas o próprio autor:
An old man got into bed with the only book he’d ever owned and found that a blue fungus had begun to bloom over the words. The man tried to pick off the fungus with his fingernails. He knew the sentences by heart, but he still opened the book for the pleasure of the letters, of seeing them form the words he already knew. Yet the more fungus he scraped off, the bluer his hands became. By the time someone from the village found the old man deceased in his bed, they couldn’t tell where the fungus on the pages ended and the old man’s blued hands began.
E então temos uma outra questão (e aqui vai um spoilerzinho básico), presente mesmo que de forma sutil toda vez que comentam sobre Beatriz, mas especificamente sobre a relação com sua obra. Lembram da Morte do Autor do Barthes? Novey leva a coisa de um jeito meio literal, hehe. “Her author was dead, ashes“.
Eu sei que são várias cutucadas sobre a mania que temos de misturar a biografia do escritor com sua obra – e poderia ser só uma defesa fácil para o fato de que Novey é uma tradutora (e de Clarice Lispector!) – mas o fato é que se pensarmos no jogo do desaparecimento de Beatriz, as “pistas” que ela vai deixando, baseadas em suas obras – não são decodificadas corretamente (ou pelo menos a tempo) justamente porque as pessoas pouco conhecem dela.
Além disso, retomando o Barthes e a ideia de que a morte do autor é o preço do nascimento do leitor, que belíssimo desfecho, a descrição da mulher escrevendo com o dedo do pé na areia da praia, se aproximando cada vez mais da água, continuando a escrever mesmo quando a água começa a dissolver suas palavras tão logo ela as escreve:
Already, the bathers on the beach had begun to look around, to wonder ho ould be the first to get up and approach her, and with what question. As for those who remained under their umbrellas, might this stranger come to haunt them anyway? Might they wake in the night and discover foam around their ankles, to find that they were entering the ocean with this unknown woman in their sleep?
O oceano como um texto sem limites, a espuma do mar como o que o leitor carrega do texto a partir do momento que o lê – independente de quem é a senhorinha escrevendo na areia da praia.
Tomando esse trecho e o outro já citado do velho com os dedos azulados, já dá para ter uma ideia de quantas imagens bonitas Novey evoca, às vezes para dizer até algo simples. Confesso que sobretudo esses momentos me conquistaram, ao ponto de eu até esquecer que ok, a parte do agiota e o romance com Marcus são meio forçados.
Sobre a descrição do Brasil, a verdade é que ela mais acerta do que erra, acho que uma das poucas derrapadas estão mais em expressões que até usamos, mas não no contexto que ela aplica, por exemplo um “Fuck the police, Emma! Ave Maria! They never find anyone who’s kidnapped“. Não sei se com a frase dá para captar, mas acho que usamos o Ave Maria mais como uma expressão de surpresa, o que não é o caso ali.
Mas no final das contas é isso: um livro divertido de verdade (você consegue imaginar fácil uma adaptação para o cinema enquanto lê), com passagens lindas e que, finalmente, reconhece a importância do tradutor. E aí fica a pergunta: quando chegar no Brasil, como será que ficarão os trechos em português?
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Ainda na tradução: eu li o livro em inglês (no shit, Sherlock), e aí ficava aquela coisa de almond tree, almond tree e eu só pensando ué, não tem amendoeira nas praias do Brasil, tem? Hum. Tem sim. Só não é a árvore que eu estava imaginando:
Amendoeira-da-praia. Mas que tal que precisei de um livro gringo para aprender o nome desta árvore?
Um comentário em “Ways to Disappear (Idra Novey)”