Então lá vou eu, né, contando que não saber nada do universo de Mitchell não pese na hora da leitura. E olha, a impressão que tenho é que ao invés de atrapalhar, ajudou, mas falo disso mais para frente. Só que isso nos leva à óbvia conclusão: é um livro bacana de ler sabendo o mínimo possível, a diversão está justamente nas pequenas descobertas que vamos fazendo em cada capítulo. Ou seja: este é um post para quem já leu Slade House.
(Eu adoro esses meus posts sabotadores que afastam os leitores ao invés de trazê-los para cá, haha.
Mentira, não adoro, não. Mas sei lá. Quando é importante não saber eu prefiro avisa para não estragar a experiência de quem planeja ler o livro. Dizer que gostei muito já ajuda? Espero que sim.)
Enfim, como tinha dito antes: Slade House é derivado de The Bone Clocks. Pelo que eu li por aí, é uma tentativa de Mitchell de unir ainda mais os romances que já publicou, transformando tudo em um grande universo (uma história única?). Para ser ainda mais específica: O que inicialmente foi um projeto de conto para o twitter acabou virando uma novela dividida em cinco partes.
Slade House vai se revelando aos poucos para o leitor, o que é importante inclusive para criar a atmosfera de horror. Essa “revelação” gota a gota é possível porque cada uma das partes é narrada por uma personagem diferente, descrevendo seus momentos na casa. Ou seja, quando uma personagem ganha conhecimento sobre o local, a narrativa volta ao zero com alguém que chega no lugar sabendo nada (ou muito pouco) sobre sua verdadeira natureza, funcionamento ou regras.
No primeiro capítulo (The right sort, que originalmente foi o conto publicado no twitter) através da narração do garoto autista Nathan Bishop, Mitchell nos oferece a primeira camada: não é exatamente assustador, ele ainda tem mais um tom de fantasia do que de terror – mesmo com a presença de fantasmas (ou o que imaginamos ser fantasmas). Quando os Bishops finalmente encontram o pequeno portão preto e veem um grande jardim e uma casa que não deveriam estar ali, ainda não sabemos o que é a Slade House, não conhecemos seus mecanismos, por isso há mais encantamento com as descrições do que a sensação de medo.
Porém, não vou negar que há momentos de tensão já nesse primeiro capítulo: como quando surge a garota (que percebemos como um fantasma) avisando para Nathan fugir, ou mesmo quando o garoto sobe as escadarias e vê seu rosto em um quadro pendurado na parede.
Toda a passagem em que os meninos brincam de Fox and Hounds é incrível, lendo o livro você consegue captar o movimento dos garotos quase como se estivesse vendo dentro da própria casa. Mas o que o primeiro capítulo faz é mostrar para o leitor que a Slade House é a forma que os gêmeos Norah e Jonah Grayer encontraram para atrair pessoas e devorar suas almas, e que aparentemente eles podem mudar de forma.
Salto de nove anos, vem o segundo capítulo, Shining Armour. O narrador é Gordon Edmonds, um policial (bem detestável, vale dizer) investigando uma pista sobre o caso de desaparecimento dos Bishops. Sem querer encontra a casa mas descobre que lá não vive nenhuma Lady Grayer, mas uma viúva chamada Chloe Chetwynd. Ele logo se encanta pela mulher e sob o pretexto de ajudá-la com a segurança do local, acaba voltando para visitá-la e então os dois começam um romance.
Aqui acho que fica um exemplo interessante sobre o funcionamento do livro: como leitor você espera que algo dê errado, mas a história que Chetwynd conta (de fantasmas que habitam o local) passam uma falsa impressão de segurança, ou ainda, fazem com que você desconfie da pessoa errada. Aqui o horror já começa a aparecer com maior força, não só pela história de fantasma contada por Chetwynd, mas também pelo que ocorre mais próximo ao fim (tem algo ali que fez com que eu lembrasse da cena do banheiro em O Iluminado). A informação mais relevante para o leitor: há uma arma escondida na casa para que as vítimas dos gêmeos possam se defender.
É então que chegamos na terceira (e melhor) parte, Oink Oink. De novo, um salto de nove anos no tempo, agora a narradora é Sally Timms, uma garota tímida que encontra um grupo de interessados em atividades paranormais no pub próximo à Slade House. Axel Hardwick, líder do grupo, tem informações não só sobre o sumiço dos Bishops, mas agora também do policial Edmonds. O que como leitores já concluímos: os Grayers se alimentam de 9 em 9 anos. É exatamente a informação que Axel traz para o grupo antes de encontrarem o portão para a Slade House.
Quando chegam lá, descobrem que a casa é habitada por estudantes, que naquele momento estão celebrando o Halloween. O que faz de Oink Oink um capítulo tão legal é que a desorientação de Sally na casa é praticamente uma descrição de um pesadelo – não só pelo bizarro (a máscara de porco que aparece do nada, o casal com o corpo todo misturado na cama, entre outros), mas pela repetição que ela sequer nota, pelos lugares que estão onde não deveriam, por se ver na TV como pessoa desaparecida há dias quando tinha entrado na casa há poucas horas.
Melhor ainda é o truque de Mitchell, novamente possível porque a narração é de um dos alvos dos Grayers que desconhece o funcionamento da Slade House: quando Todd Crossgrove aparece para salvar Sally, sabendo tanta coisa sobre a casa e sobre os gêmeos, há uma falsa sensação de que o desfecho do capítulo será diferente, que o livro tomará outro rumo. Não é o caso – e aqui as informações mais importantes para levar para o capítulo seguinte é que os Grayers podem habitar o corpo de outras pessoas e que Edmond conseguiu se comunicar com Sally, passando a arma para ela – um tipo de grampo de cabelo com um rosto de raposa com olhos de jade, deixados na casa pela mãe de Nathan.
A quarta parte (You Dark Horse) mantém o nível e se tem algo que já aprendemos durante a leitura é que não dá para confiar em ninguém. O capítulo é narrado por Freya Timms, irmã de Sally e repórter que retorna ao local para entrevistar Fred Pink, presença constante nas histórias de sumiços da região: Fred foi o último a ver os Bishops, foi quem deu a pista da casa para Edmonds e foi quem falou sobre o intervalo de nove anos entre um desaparecimento e outro. Agora em conversa com Freya ele faz uma série de revelações sobre os gêmeos, incluindo detalhes sobre seus primeiros anos de vida, a descoberta dos “poderes”, o envolvimento com o “shaded way” (que, ao que parece, tem relação com The Bone Clocks) e o modo como atraíam pessoas especiais para a casa para que pudessem comer suas almas (sim, é literal mesmo o negócio de comer a alma).
E então você começa a pensar “Puxa, mas isso já está ficando chato. Eles não saem desse pub e ficam só nesse conversê, quede Slade House?”. Aí vem uma das melhores viradas no livro: a casa é apenas algo que os gêmeos chamam de “orison”, uma ilusão, que não precisa necessariamente ser da casa – e aqui nesse capítulo o “orison” é justamente o pub.
É um baita susto. E além de todo o background dos gêmeos e a informação sobre o “orison”, o que ficamos sabendo também é que as pessoas precisam beber um líquido dentro do “orison” para que os gêmeos consigam extrair a alma para devorá-las.
Chega então a última parte, Astronauts. O interessante aqui é que quem narra a história é Norah Grayer. O salto de nove anos coloca a narradora em 2015, habitando o corpo de um “astronauta”, termo que usam para pessoas que fazem turismo em “orisons”.
Ele/ela vão guiar uma médica que está estudando casos como o de Fred Pink e tem todas as anotações que ele fez sobre os Grayers. Como leitores, já temos todas as informações em mãos – e o potencial para esse ser o mais assustador dos capítulos era enorme, mas Mitchell fecha o ciclo retornando à fantasia que dominou a primeira parte para concluir sua história (sem de fato conclui-la, o desfecho ficou em aberto).
Sendo bem sincera: como não li os outros, não faço ideia se é o melhor livro dele (o que li por aí diz que não, inclusive tem gente dizendo que foi um tropeço enorme na carreira dele). Só sei que nem tinha terminado a leitura e já queria ler The Bone Clocks.
No mais, fiquei chateada por achar que haveria qualquer coisa muito louca que justificasse as quebras dentro dos capítulos com aquelas reticências (anotei num caderno alguns começos, pensei em sobreposição de narrativa especialmente por causa do desenho da capa) e no fim as reticências só existiam por causa da natureza inicial de Slade House, um conto no twitter: David Mitchell usava para conectar uma palavra com outra em um período longo que não caberia nos 140 caracteres. Fuééém. Culpa do Danielweski com o House of Leaves, blé!
Hahah, agora quando vi essa capa pensei que fosse outro livro do carinha de House of Leaves. Mas aí pensei e pensei sobre o nome do autor e lembrei que era o do cloud atlas :p