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The Story of the Lost Child tem como ponto de partida o final do terceiro livro: Lenu abandonando tudo para passar alguns dias em Montpellier com Nino. De novo Elena Ferrante cozinha a história em fogo brando, com Lenu descrevendo seus dias com o amante e o início da separação. Terminado o livro eu ainda queria muito, MUITO, MUUUUUUITO que o final de Those Who Leave and Those Who Stay ainda fosse aquela fala da Lenu para Nino: “I said my way, not yours. Between you and me is over.” porque não é querer ficar julgando a vida de personagens fictícios, mas caramba, decisão ruim atrás de decisão ruim da dona Lenu, sabe. Foi puxado, foi sofrido.
Porque mesmo quando Nino diz umas coisas bonitas lá no terceiro volume, você sabe, não dá, ele não presta. São várias bandeirinhas com um ALERTA! escrito em vermelho que vão aparecendo, pequenos detalhes narrados por Lenu que te fazem perceber que o sujeito é um grandíssimo filho da puta. Nem tanto por ser mulherengo – isso é irritante, e em determinado momento no livro chega até a ser chocante – mas são as ações dele. Todo aquele discurso que parece empoderar mulheres e de repente está ele lá, anulando completamente Lenu na França, só dando alguma atenção para a mulher quando outras pessoas descobrem (porque ELA falou) algo sobre os livros que tinha publicado. Ou quando morre de ciúmes sobre Pietro mesmo não tendo a coragem que Lenu teve e continuar mantendo o casamento com Eleonora.
Mas sabe o que doeu mesmo, mais do que qualquer traição? Mais do que Lina revelando daquele jeito curto e grosso que Nino ainda a procurava? O momento em que Nino revela que o artigo sobre religião que Lenu tinha escrito na adolescência só não foi publicado porque… porque ele jogou na lixeira, ficou com inveja, porque ela escrevia muito bem. Se você tem a leitura de A Amiga Genial mais ou menos fresca na memória como eu tinha, resgatar a dor de Lenu ao saber que seu artigo não tinha sido aprovado, principalmente, o que significou para ela aquilo, nossa, que tapa. Que tapa.
“Although I now wrote about women’s autonomy and discussed it everywhere, I didn’t know how to live without his body, his voice, his intelligence.”
E é isso. 50% do livro é praticamente a Lenu se debatendo para se livrar dessa obsessão que é Nino. O pior é que ela tem noção disso, de que ele de certa forma a prejudica, que ela tem um débito enorme com suas filhas mais velhas (Dede e Elsa) por retirá-las do conforto da vida que tinham com o pai e voltar para o bairro apenas por causa da paixão da mãe por outro homem. Comentei sobre o artigo que Lenu tinha escrito em A Amiga Genial, e a verdade é que The Story of the Lost Child parece espelhar bastante o primeiro volume da série napolitana. Não só por resgatar a questão do artigo não publicado, mas se pensar bem, a paixão de Melina por Donato Sarratore parece casar bem com a de Lenu com o filho de Donato.
Além disso, de novo a ideia de que este é um mundo difícil para as mulheres. Sei que o modo como a sogra de Lenu a trata após o rompimento com Pietro parece ruim, mas é ela que diz da forma mais clara e sincera o que a nora poderia esperar para seu futuro: você é mulher, você não pode ter tudo. Fugir com Nino e investir na carreira significava torna-se uma mãe ausente, ou pior, viver com a culpa de ser uma mãe ausente mesmo se desdobrando para garantir o melhor para as crianças, ter sempre os dedos apontados contra você por decidir “ousar” querer mais do que criar suas filhas em casa. E aí talvez a dor de Lenu com a constância com a qual o dedo apontado em sua direção costume ser na maior parte das vezes o de Lina.
De qualquer forma, com o início do relacionamento com Nino e o retorno para Nápoles, logo Lenu se reaproxima de Lina e da vida no bairro. Tudo está diferente e ao mesmo tempo tudo está tão igual: o domínio dos Solara agora se mostra no tráfico de drogas. As personagens dependentes da força e inteligência de Lina continuam próximas, extraindo dela o que podem. Por exemplo, não deixa de ser irônico que Stefano neste quarto livro apareça como um homem velho e fraco, completamente dependente da pensão que Lina paga. O irmão Rino continua precisando do dinheiro da irmã, mas agora está envolvido com drogas. O filho Rino acabou mostrando-se uma decepção para a mãe, que sonhava com um garoto tão inteligente quanto ela. Michele de tão obcecado por Lina passa a se encontrar com Alfonso, etc.
E se observar, tudo tem a ver com Lina, com alguma articulação, alguma manobra, alguma ação que colocou aquelas pessoas em movimento, mas sempre a orbitando – como planetas ao redor do sol. O modo como a amiga de Lenu controla a vida de todos ali, somando a isso uma fala da própria personagem:
The only problem has always been the disquiet of my mind. I can’t stop it, I always have to do, redo, cover, uncover, reinforce, and the suddenly undo, break. Take Alfonso, he’s always made me nervous, ever since he was a boy, I’ve felt that the cotton thread that held him together was about to break. And Michele? Michele thought he was who knows what, and yet all I had to do was find his boundary line and pull oh, oh, oh, I broke it, I broke his cotton thread and tangled it with Alfonso’s (…)
fez com que eu pensasse bastante na relação das ações dela com a profissão de Lenu. A ideia de força criadora, o trabalho do escritor. Como se Lenu moldasse a ficção, Lina a realidade. Obviamente, a ideia de uma figura como Lina, manipulando a realidade de tal modo que os eventos ocorram da forma que ela acredite ser mais apropriada acabaria oferecendo para a figura uma característica de deidade impossível. E talvez até por isso a leitura que acabei fazendo é de que temos vários três níveis de “autoria” na série napolitana:
Elena Ferrante (a autora real) > Lina (a autora-personagem) > Lenu (a narradora-personagem que se descreve como autora do livro)
Sobretudo por causa das bonecas que chegam pelo correio no final do romance. Lina não precisaria “invadir” o romance que Lenu estava escrevendo. Bastava mostrar-lhe: veja, você também é personagem na minha história, e eu reescrevo nossa história desde o começo se quiser. Se as bonecas sempre estiveram com Lina, não havia razão para subir as escadas e pedi-las para Dom Achille. Não haveria o dinheiro, não haveria o livro As Mulherzinhas nem a ideia de que a literatura as salvaria da miséria.
Aliás, na relação com a literatura, um assunto que já era recorrente nos outros volumes parece voltar com mais força neste último. Qual o real poder da literatura? Quando o texto escrito por Lina e Lenu contra os Solara não parece surtir o efeito esperado, a decepção de Lina é óbvia – ela parece sempre ter acreditado naquilo, na literatura como algo que liberta, o que traz o melhor para as pessoas. Mas então os Solara não são punidos e fica a pergunta: então para que serve isso? A resposta vem lá no final, através de Lenu:
It’s only and always the two of us who are involved: she who wants me to give what her nature and circumstances kept her from giving, I who can’t give what she demands; she who gets angry at my inadequacy and out of spite wants to reduce me to nothing, as she has done with herself, I who have written for months and months and months to give her a form whose boundaries won’t dissolve, and defeat her, and calm her, and so in turn to calm myself.
Aliás, com este trecho eu insisto na questão dos três níveis de autoria. Porque ao se negar assumir a autoria do livro, dar a voz para Lenu, o que Lina faz é justamente apagar-se. E mesmo dentro do livro, quem sobrevive não é Lina, é uma personagem. O conflito entre real e ficção mostrado no fato de que não importa o que Lenu conte sobre a amiga, é apenas uma visão de várias possíveis.
Tem mais um trecho que eu acredito reforçar essa leitura sobre Lina ser a autora-personagem. Lenu em determinado momento diz:
I’m wrong, I said to myself in confusion, to write as I’ve done until now, recording everything I know. I should write the way she speaks, leave abysses, construct bridges and not finish them, force the reader to establish the flow (…)
O que é interessante sobre esse trecho é que é justamente o que Lenu faz como narradora-personagem de The Story of the Lost Child. Ela levanta muitas questões que jamais serão respondidas no livro, muitas vezes detalhes pequenos, informação que não passa de sugestão. Por exemplo: o que explicaria tamanha semelhança entre Alfonso e Lina? Ou ainda, nos dois acontecimentos mais importantes do livro, o que aconteceu com Tina e que matou os Solara?
Sobre os Solara, aliás, que momento brilhante no livro. Eu não sei se pelo crime ocorrer nas escadas da igreja, mas lembrei imediatamente daquela cena em O Poderoso Chefão, com o batismo do filho de Michael acontecendo ao mesmo tempo que vários inimigos da família eram assassinados. De qualquer forma, já que a ideia é “force the reader to establish the flow“, confesso que achei suspeita a viagem de Enzo, mais suspeita ainda a reação de Lina quando conversa com Lenu sobre o assassinato. Além de constatar o óbvio, que o bairro não aguentava mais viver sob o domínio dos irmãos, tem lá uma “pontinha solta” deixada no final do capítulo:
No one killed them – she smiled – no one weeps for them. And she stopped, and was silent for a few seconds. The, without any obvious connection, she told me that she didn’t want to work anymore.
É claro que a falta de interesse pelo trabalho poderia estar ligada pela morte de seu inimigo. Não haveria mais razão para fazer uma oposição ao domínio de Marcelo e Michele. O negócio é que o trabalho não significa isso, ou apenas não só isso: é o vínculo entre ela e Enzo. Com efeito, pouco tempo depois eles se separam. Pode não significar que Enzo seja o assassino, mas me parece certo dizer que para Lina ele é.
E a motivação para o crime? Mais uma das passagens deixadas para os leitores resolverem, o que poderia ter acontecido com Tina. Antes de mais nada, lindíssima a narração do momento em que Tina desaparece. Lembrei de The Days of Abandonment, quando a mulher via o marido com a amante. Mas aqui a agonia de Lenu vendo Lina conversando com Nino, o vendedor de rua, os cheiros, os sons. E mesmo que a própria narradora em algum momento evoque o evento das bonecas lá de A Amiga Genial para falar do que acontece com Tina, eu ainda acho que o espelhamento se dá mais com a relação das personagens com Nino do que com suas filhas.
De qualquer forma, para Enzo e Lina a ideia que fica é de que os Solara sequestraram a menina, daí a motivo do crime nas escadas da igreja. Sei que muito leitor ficará louco com a falta de respostas sobre o sumiço de Tina, mas confesso que o que mais gostei de como o desaparecimento consegue de certa forma trazer à tona todos os conflitos das personagens. Enzo culpa os Solara (assim como pessoas próximas do casal). Lina culpa Lenu, ao sugerir que na realidade eles queriam sequestrar Imma pensando que Lenu era rica e famosa. Lenu culpa a própria Lina por estar dando atenção para Nino e não para Tina. E assim vai.
E de qualquer forma, nessa brincadeira de ficção se passando por realidade, seria no mínimo forçado esperar em um final feliz, pelo menos em termos de personagens realizando seus desejos. Lina não verá novamente Tina, e sozinha, sumirá. Lenu já velha e solitária, encontra dificuldades para manter o sucesso como escritora e tem uma relação um tanto distante das filhas (que ainda adolescentes vão viver com o pai nos Estados Unidos) – meio que confirmando o que Adele já tinha avisado anteriormente. O que sobra são apenas as memórias de uma amizade, de uma vida.
É engraçado que normalmente quando gosto tanto de um livro, logo que chego no fim eu fico triste. Aquela tristeza de quem tem que se despedir de alguém, sabe como? E eu tinha certeza que me sentiria assim com The Story of the Lost Child, mas as últimas páginas foram chegando e a sensação não veio. Tem cinco dias e começo a entender o motivo: continuo pensando no livro, as personagens continuam aqui comigo. Não sei se justamente pelas questões em aberto, mas é como se ele não tivesse acabado, como se logo mais eu fosse ler algo novo narrado por Lenu.
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ÚLTIMAS:
A passagem que marca o diálogo e depois o sexo entre Lenu e Antonio quando ela fica sabendo das infidelidades de Nino é linda demais. Aliás, que personagem doce que é o Antonio, e que engraçado dizer isso sobre uma figura que ganhava a vida sendo o brutamontes dos Solara.
Tem toda uma teoria que eu poderia desenvolver sobre Lina, dissociação e despersonalização, mas vá lá, me falta conhecimento de psicologia então não vou seguir nessa trilha.
Falei de The Days of Abandonment e fiquei aqui pensando em como alguns temas são recorrentes. A escritora casada com um professor que deixa de lado a carreira para cuidar dos filhos e então é traída (Olga e Mario/Lenu e Nino). A figura da poverella evocada em The Days… que de certa forma tanto lembra Melina. O sexo com outro homem como forma de selar o fim de um relacionamento. Enfim, são pequenos detalhes, mas que essencialmente são variação de um mesmo tema: o quanto como mulheres queremos liberdade, ao mesmo tempo que, conscientes de nossos desejos, nos deixamos prender por causa da crença no amor romântico.
Olá Anica, você tinha razão como essa série vicia, recebi os 3 últimos livros dia 31 e hoje dia 5 já acabei a leitura.Acho que exagerei um pouquinho, andei até sonhando em italiano.
Meu preferido foi o primeiro, achei o desenvolvimento da trama mais original com viradas não esperadas na estória, tanto no segundo como no terceiro volume já conseguia perceber com antecedência por onde as coisas iam fluir.
Alguns pitacos:
1- que dupla sem igual para tomar decisões idiotas.
2- nunca as duas estão bem, uma melhora um pouco a outra cai.
3- um embate sem fim do esforço contra o talento natural.
4- sem discussão que Nino era um grande fdp,mas ela trair o marido dentro da casa dela enquanto ele dormia foi um chute no estômago.