Sendo bem sincera, a verdade é que aquele primeiro parágrafo gigante me enchia de preguiça, o que vencia qualquer curiosidade sobre o que Moz tinha a dizer sobre a própria vida (já comentei por aqui, não sou do tipo que se sente confortável esmiuçando a vida pessoal de artistas). Não sei se vou conseguir explicar, mas é mais ou menos assim: por exemplo, o A Arte de Pedir da Amanda Palmer é bem bacana, e eu admiro horrores a Amanda (às vezes acho que até mais do que o trabalho dela). Mas me incomodou profundamente o tom de justificativa para hater que o livro acabou tomando. Não estou dizendo que com isso o livro ficou ruim, mas aquela pontinha da justificativa desnecessária está sempre lá, cutucando.
E eu achei que o Morrissey seguiria por esse caminho, uma espécie de carta de justificativa, um mero “dar a última palavra” sobre assuntos do passado. Porque mesmo que você não dê a menor bola sobre a vida do Morrissey, é impossível não ficar a par das inúmeras polêmicas em que ele acabou se envolvendo durante sua carreira. São muitas. O cara é um pára-raio de treta. Mas então lá vamos nós, começando na infância do músico…
…streets upon streets upon streets…
… bom, tem lá o parágrafo gigante. Aliás, vários parágrafos gigantes. O livro é meio caótico, embora respeite uma certa ordem cronológica você lê Morrissey falando algo sobre a banda para de repente do nada saltar para algum comentário sobre um programa de tv, por exemplo. Algumas vezes eu cheguei a cogitar que minha edição estivesse com algum defeito, sério mesmo. “Hum, como ele saltou desse assunto para esse?”.
E o mais maluco é que você se acostuma com isso. E percebe – incluindo aí até quando cita músicas próprias – que é quase como se ele tivesse prestado um depoimento sobre a vida e então só transcrevesse o áudio gravado. É uma loucura, mas você escuta a voz dele ali. A indignação com o que acredita ser algumas injustiças, aqueles 25%, aaaah os 25%! Chega um momento em que você pensa que biografias só deveriam ser escritas dessa maneira.
A grande sacada dele é que nesse ritmo ele quase se transforma em personagem de ficção. Sabe, não precisaria ser o Morrissey, é irrelevante o que ele conta. É o COMO ele conta que agrada tanto. Imagine o que é você estar lá revirando os olhos sobre algum comentário qualquer (porque quem é fã sabe, o Moz não é bolinho) e DO NADA o sujeito começa a falar sobre a vez que viu um fantasma. Isso, um fantasma. E ele não descreve o evento com aquele cinismo de quem acredita mas ao mesmo tempo sabe que muita gente não acredita: ele descreve o evento como descreveria, sei lá, o dia em que furou o pneu do carro durante um passeio.
E tem aquele talento dele para cunhar frases inesquecíveis, né. Eu ia grifando e pensando “nossa, imagina uma música com isso aqui”. É o Morrissey afiadíssimo, aquele mesmo cara do How Soon is Now e Alma Matters. Como quando lá no finalzinho diz:
Take it as it is. I am no more unhappy than anyone else, and most humans are wretched creatures – cursed by the sadness of being. The world created me and I am here – never realizing that I am in love until it gets me into trouble.
E então tudo o que você quer é que saia logo o tal do romance que estão comentando por aí. Porque no final das contas o que essa biografia melhor fez foi mostrar o quanto esse sujeito tem talento não só para escrever letras de músicas. Veja bem, não é o caso de uma história interessante que atrai. É o modo como ele escreve, o domínio que mostra ter.
“Yadda yadda yadda, Anica, eu quero é saber sobre o conteúdo da biografia, vou gostar?” Entãoooo…
… como eu disse, não me interesso muito pela vida privada de pessoas cujo trabalho admiro. Mas considerando o conteúdo (ou seja, a vida do cara que compôs Everyday is Like Sunday), não dá para evitar um certo desapontamento com o modo como Moz acaba dedicando MUITAS páginas ao rancor que tem contra algumas figuras. Se alguém for fazer uma contagem, sobre a vida como um dos membros do Smiths (ou mesmo a fundação da banda) você provavelmente vai chegar em um número menor de páginas do que o dedicado para o processo do baterista Mike Joyce contra o Morrissey (e o Marr, como o Moz gosta de lembrar, já que a imprensa parece ter esquecido).
É o rancor contra o Geoff Travis da primeira gravadora da banda – acusado por Morrissey de nunca investir de fato na banda para fazer dela um número um. Ou rancor contra a NME, com seus artigos sobre Morrissey ser racista. Rancor sobre o fim dos Smiths, ou sobre como os outros membros só reapareceram falando sobre uma possível reunião quando ele já tinha alcançado um certo sucesso na carreira solo.
Fica aquela sensação de amargura. Como pode algo tão bom ser tocado por tanta coisa ruim? A reação de Morrissey a um show na Turquia (se eu não me engano), já na primeira década do ano 2000, passa a sensação de que ele virou anos e anos achando que seu trabalho jamais teve reconhecimento. E caramba, eu sei que não sou a única pessoa cuja vida foi tocada pelas músicas dos Smiths e da carreira solo do Morrissey. Sei que hoje com a internet ser conhecido em outros países é relativamente mais fácil, mas Morrissey já era *o* cara aqui no Brasil na década de 80. É bizarro demais ler o sujeito descrevendo Vauxhall and I como se fosse ainda uma tentativa de se firmar no mercado – gente, eu lembro até hoje da minha alegria quando FINALMENTE consegui comprar o cd.
De qualquer forma, um momento que pode ser bem interessante para os fãs é o anterior ao surgimento dos Smiths. Ler Morrissey falando de seus primeiros contatos com a música, de como o New York Dolls, Lou Reed, Ramones e outros artistas o influenciaram é muito bacana. Porque na distância da década de 2010, você vê lá, de década para década esses artistas se influenciando e criando coisas fantásticas que sobrevivem ao tempo por falarem tanto, seja lá quem esteja escutando. E claro, as anedotas dos encontros com figuras como David Bowie (um dos artistas mais citados por Moz), como por exemplo:
I meet David Bowie for breakfast at a discreet restaurant at the foot of the Hollywood Hills. Both standing at the buffet with our empty plates, David hovers over what are horrifically called ‘cold cuts’. I nestle up beside him.
‘David, you’re not actually going to eat that stuff, are you?’
Rumbled, he snaps: ‘Oh, you must be HELL to live with.’
‘Yes, I am,’ I say proudly, as David changes course and sidles off towards the fruit salad, and another soul is saved from the burning fires of self-imposed eternal damnation.
David quietly tells me, ‘You know, I’ve had so much sex and drugs that I can’t believe I’m still alive,’ and I loudly tell him, ‘You know, I’ve had SO LITTLE sex and drugs that I can’t believe I’m still alive.’
É quase como se temporariamente ele abrisse as cortinas da janela da sala e deixasse que espiássemos a festa dentro de casa. Nesse sentido tenho certeza que qualquer fã ficaria satisfeito com a biografia. De minha parte, o que mais me deixou feliz foi descobrir que um dos meus músicos favoritos é também um grande escritor. Cruzando os dedos para que o romance chegue em e-book bem rápido.
Apesar de eu também ficar apreensivo em relação a ler biografias de artistas de quem sou fã (a gente pode acabar se decepcionando um pouco com eles devido a algo que fizeram ou pensam) por um lado acho esse tipo de livro fascinante, principalmente quando se trata de músicos, porque me faz viajar até à época, praticamente se situar naquele período. Um dos riscos de a biografia ser escrita pelo próprio músico é aquele que você mencionou: de do nada ele interromper a narrativa sobre sua carreira musical e começar a divagar sobre assuntos banais. Mas é algo que temos que aceitar, afinal a história deve ser contada por aqueles que a viveram.