boba automática e aí e enrolo um monte para ler o livro (ou em alguns casos, nem leio). Mas quando comparam A Garota no Trem de Paula Hawkins com Garota Exemplar, tenho que dizer que eu meio que consigo entender o motivo.
Sim, tem lá o óbvio: o sumiço de uma mulher e a culpa caindo sobre o marido. Ok, já vimos isso em vários outros lugares, não é exatamente novidade – já não era quando Garota Exemplar chegou nas livrarias. A questão é que, como sempre, não é bem o que se conta, mas como se conta. E assim como o motor principal de Garota Exemplar era mostrar que não conhecemos realmente ninguém e nos apressamos em julgamentos a partir das pequenas porções das histórias sobre essas pessoas, A Garota no Trem parece trazer uma ideia semelhante, embora executada de maneira um pouco diferente – daí as comparações.
Ok, vamos ver se consigo explicar. Começamos a narrativa em 5 de julho de 2013, o ponto de vista é de Rachel, a tal da “garota no trem”. Toda manhã ela pega o trem para Londres, sempre no mesmo horário. Vamos observando que por conta da rotina, ela já criou alguns rituais, como por exemplo observar as casas próximas dos trilhos quando o trem para. Na realidade, ela gosta de olhar uma casa em especial, a de Jason e Jess.
Ela não conhece Jason e Jess. Rachel sabe que o nome do casal provavelmente nem é esse, é apenas um nome que ela inventou, ao imaginar como os dois provavelmente têm a vida perfeita que ela tinha há alguns anos, e que acabou perdendo ao se separar de Tom.
Essas primeiras viagens, indo de manhã e voltando no fim do dia, são fundamentais para entender a ideia principal do livro. Porque de certa forma o que acontece com Rachel quando ela finalmente conhece Jason e Jess (que obviamente têm nomes e vidas diferentes das imaginadas por ela) é um tanto parecido com o que acontecerá com o leitor quando vamos conhecendo mais sobre Rachel – seja a partir do que outras personagens contarão, seja a partir do que ela revelará mais para frente.
(A partir daqui começam os spoilers, então se você ainda não leu o livro, pode pular para o último parágrafo que é meio aquele que eu digo que “ei, é um livro bacana” e termino com uma frase de efeito ou simplesmente não termino porque sou péssima em concluir textos)
O ponto mais importante é revelado aos poucos pela própria Rachel. Aquela bebidinha no trem com um “ainda bem que é sexta-feira”, logo ficamos sabendo que não é só um vinhozinho ou um gim e tônica qualquer para relaxar e comemorar o começo do fim de semana. Ela é alcoólatra, já perdeu o emprego por causa disso e só entra no trem para Londres para fingir para a colega com quem divide o apartamento que ainda trabalha. Foi abandonada pelo marido por causa da bebida e – talvez o mais sofrido para ela – sempre que fixa o olhar na casa de “Jason e Jess”, é na realidade para evitar enxergar a casa próxima a deles, que era onde ela vivia com Tom. Tudo para evitar a dor de ver que o ex-marido não só continuou vivendo lá, mas seguiu em frente: casou de novo, tem filha, está feliz.
Se você retorna para as primeiras viagens de trem descritas por Rachel, você não consegue enxergar tudo isso logo de cara. É aos poucos que as informações são passadas, construindo as personagens cuidadosamente. Todas de certo modo ainda estão sendo construídas até o fim do livro. E quanto mais sabemos sobre as personagens, mais e mais as narradoras deixam de ser confiáveis. A saber, a maior parte da história é narrada por Rachel, mas alguns capítulos também são narrados por Megan (a “Jess” de Rachel, que desaparece em julho de 2013) e Anna (a nova esposa de Tom).
A história gira em torno do sumiço de Megan, sobre o que pode ter acontecido desde que ela saiu de casa após uma briga com Scott. Rachel descreve os eventos poucos dias antes do desaparecimento e segue narrando linearmente até o desfecho. Os pontos de vista de Megan e Anna já são um pouco mais embaralhados: narram eventos de um ano antes, voltam para o momento do desaparecimento, etc. Mas, como disse, são esses diferentes olhares que reforçam a ideia de que não é possível confiar em ninguém e que, basicamente, todos são suspeitos – mesmo Rachel, já que ela simplesmente não consegue lembrar o que aconteceu no dia em que Megan sumiu, sabe apenas que chegou em casa com sinais claros de violência.
Parte da falta de confiança de Rachel como narradora vem não só dos apagões que ela tem quando bebe muito, mas também de pequenas mentiras e omissões. Aqui o melhor exemplo seria o dia em que ela pega o bebê de Anna e Scott enquanto Anna está dormindo, como ela narra a história de jeitos diversos em momentos diferentes.
É uma sacada bem legal, acaba atiçando a curiosidade do leitor ao mesmo tempo que realmente o envolve no jogo de dedução que um livro do tipo propõe. “Ahhh, só pode ser x” – e aí vem uma informação que descarta a possibilidade. “Então aconteceu y naquela noite!” e cai mais uma teoria. Bom, você sabe como funciona. E nesse sentido A Garota no Trem funciona muito bem – especialmente porque o que veremos lá no desfecho não é algo que surge do nada tipo o Freddy acusando o Ruivo Herring, tudo é plantado aos poucos para chegar no clímax e ao mesmo tempo que suas suspeitas são confirmadas você ainda assim se vê surpreendido. De novo: não é só sobre o que acontece, é como acontece.
Tenho lá minhas ressalvas sobre a Megan consigo compreender a situação em que ela se encontrava, mas a ideia de preservar a identidade do amante nos capítulos embora funcione para o twist, fica um tanto forçada. Anna é irritante na maior parte do tempo, mas mais próximo ao fim algumas características dela chamam a atenção.
É engraçado que três mulheres com vidas tão diferentes tenham algo tão forte em comum: as três sofrem abuso e mesmo assim tentam “absolver” os homens de quem são vítimas por causa do amor ou ainda, por causa do ideal de vida feliz. Anna está se sentindo miserável naquela vida de dona de casa, mas volta e meia repete o mantra de “veja como minha vida é perfeita”. Megan sequer se dá conta que ter que apagar os históricos antes de desligar o computador porque sabe que o marido vai ler tudo depois está fora do normal. E Rachel… ah, Rachel. Tenho cá para mim que muito do que me prendeu ao livro é que ela sofre tanto por causa das personagens masculinas que eventualmente teria que chutar algumas bundas.
Mas no final das contas o que vemos do começo ao fim é isso: retratos incompletos que vão sendo preenchidos aos poucos, nossa opinião sobre uma personagem ou outra mudando de capítulo para capítulo. Ou seja: como na vida, imaginamos histórias para pessoas para completar as lacunas, aquilo que não sabemos sobre elas. E nem sempre a realidade bate com aquilo que criamos, especialmente quando nossa imaginação é generosa e eleva quase à perfeição gente que, assim como nós, tem lá suas imperfeições.
ATUALIZADO 19/07/2015: Saiu uma entrevista legal com a autora no Guardian. A saber, ela acabou de bater o recorde de vendas do Dan Brown. Esse negócio de vendas é meio bizarro, algo que é sucesso lá fora pode não fazer muito barulho por aqui, mas fico com a impressão de que você ouvirá muito sobre A Garota no Trem nos próximos meses.
Tem um texto que escrevi, chamado “A moça da porta”. Ele está no meu tumblr (abilioplneto.tumblr.com), na primeira página ainda.
Nele, eu faço algo parecido com a Rachel, teorizo e falo sobre minhas impressões dessa moça. Embora me baseio mais no que sinto e capto e creio que minha intuição está correta, não deixa de ser algo parecido com o que a Rachel fez nesse livro(vale contar que pulei para o ultimo paragrafo, conforme indicado a quem não leu o livro :P).
Eu gosto de observar as “pessoas de sempre” dos caminhos que faço, dou muitas vezes apelidos pra elas também e me ponho a imaginar que vida elas tem… Mas acho que, embora não acerte tudo o que imagino, não imagino as pessoas próximas da perfeição… E creio que, se tivermos a noção dos limites entre os fatos e a nossa imaginação, é um exercício bacana e valido 🙂
Que ideia bacana =] Eu lembro que também costumava observar as pessoas e imaginava histórias para elas, mas fui deixando o hábito de lado, não sei bem o motivo =/ Acho que é porque antes eu passava mais tempo no ônibus (para chegar na faculdade eu levava quase uma hora!)
To na duvida se leio ou não.. gosto de trhiller,mas faz tempo que nao leio um bom..