Dias de abandono (Elena Ferrante)

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Capa da edição brasileira

(ATUALIZADO 15/07/2016: Esqueci completamente de editar aqui quando chegou a tradução no Brasil (pela Biblioteca Azul, assim como os outros livros da autora). Vou colocar no post a capa da edição brasileira, até porque caramba, que capa linda. Como não li a tradução, as citações permanecem em inglês.)

Antes de começar a falar sobre The Days of Abandonment acho que cabe falar um pouco sobre a autora, a italiana Elena Ferrante. Ainda um pouco fora do radar dos leitores brasileiros (o que é justificável, já que ainda não há tradução de seus livros por aqui), lá fora ela já conseguiu inclusive um espaço de respeito até mesmo na crítica anglófona (não sei para vocês, mas para mim um escritor de língua latina ganhando espaço por lá ainda é algo meio raro).

De qualquer forma, o que mais se fala sobre Ferrante é que ninguém sabe quem é Elena Ferrante. Palpites aqui e acolá, mas nada definitivo. Reza a lenda que no início da carreira ela já chegou dizendo para a editora que não participaria de qualquer evento de publicidade relacionado ao livro:

“I’ve already done enough for this long story: I’ve written it. (…) If the book is worth something, it should be enough. I will not participate in debates and conferences, if I am invited. I will not go to accept prizes, if I am given any. I will never promote the book, above all on television, in Italy or, should the need arise, abroad. I will only participate through writing, but I will also try to keep this to the bare minimum.”

O que não deixa de ser um tico presunçoso, eu sei, mas ao mesmo tempo não dá para deixar de pensar que ela tem razão. E que bom que ela pode se dar ao luxo de continuar escrevendo e sendo publicada e traduzida sem ter que investir em publicidade, embora vá lá, a própria reclusão acaba virando um tipo de propaganda, caso contrário eu não teria gastado quase 300 palavras só para comentar sobre a autora.

De qualquer forma, o que gosto sobre um autor adotar um pseudônimo (como com a Claire North na época do lançamento do Harry August) é que vira, de certa forma, uma passada de perna num ambiente ainda um tanto machista. Não vou me prolongar aqui, deixo só o link para o artigo da Luisa Geisler n’O Globo que é tipo um “vale a pena ler de novo” quando o assunto é mulheres escritoras. E antes de encerrar os comentários sobre a autora, vale lembrar que ainda em 2015 a Bliblioteca Azul (Globo Livros) vai lançar L’amica geniale, originalmente publicado em 2011 e que abre uma série de quatro volumes.

Devidamente apresentados, vamos lá para The Days of Abandonment? Ok. Sei que poderia ter começado com L’amica geniale (My Brilliant Friend na edição americana), mas resolvi retroceder um pouco mais e começar pelo segundo livro da carreira da autora, I giorni dell’abbandono, publicado em 2002. A escolha se deu por ter lido um comentário em algum canto sobre o Dept. of Speculation (você sabe, um dos meus amorzinhos do ano passado) que dizia que a Jenny Offill tinha plagiado a Elena Ferrante. Já digo que não, um não tem nada a ver com o outro. Embora trabalhem o mesmo tema (a traição), cada um o faz de maneira bem distinta.

No caso de The Days of Abandonment temos Olga, escritora que deixou de lado a carreira para cuidar da casa e dos dois filhos. A vida seguindo sem maiores incidentes até que um dia o marido anuncia que está indo embora. Assim, sem maiores explicações. Obviamente ela desconfia que existe outra mulher, o que logo se confirma. E então o que vemos a partir disso é como Olga liderá com a dor do abandono, o medo de se perder de enlouquecer. Do que seria a vida sendo um depois de tanto tempo sendo par.

E nossa, que tapa que é lembrar desse medo constante que a mulher sente, de que sem o par (via de regra, uma figura masculina) não é todo. A necessidade de contarmos nossas histórias como se para felicidade existisse roteiro certo e pronto, incluindo um bom emprego, bons filhos e bom marido. Como se ser só não fosse alternativa. Acompanhamos a queda de Olga e mesmo sem nunca ter estado no lugar dela, de alguma forma conseguimos reconhecer aquela dor.

“Everything was so random. As a girl, I had fallen in love with Mario, but I could have fallen in love with anyone: a body to which we end up attributing who knows what meanings. A long passage of life together, and you think he’s the only man you can be happy with, you credit him with countless critical virtues, and instead he’s just a reed that emits sounds of falsehood, you don’t know who he really is, he doesn’t know himself.”

É claro que parte do efeito que o livro causa no leitor se dá pela narração em primeira pessoa, tão honesta, mostrando onde dói. Acompanhar o raciocínio de Olga, das tentativas de reatar ou de descobrir a identidade da outra é extremamente forte. Um vínculo, uma cumplicidade é estabelecida, e então você se surpreende pensando “AQUELA VACA!!” da outra ou “MARIO FILHO DA p*!!” do marido. Quase como se fosse uma amiga se abrindo depois de ter passado por um período ruim de sua vida.

Após um dia especialmente ruim (desastroso, na realidade), aos poucos ela tenta retomar o controle da própria vida, arrumando um emprego, deixando que as crianças fiquem na casa do pai e até tentando algumas saídas com amigos. Aqui há um momento especialmente triste, quando uma conhecida tenta arranjar um namoro para ela com um amigo e quando ela percebe a “armadilha” e então pensa:

“The whole thing depressed me. This is what awaits me, I thought. Evenings like this. Appearing at the house of strangers, marked as a woman waiting to remake her life. At the mercy of other women who, unhapilly married, struggle to propose to me men they consider fascinating”.

Aqui entrando novamente na questão de acreditar que uma mulher só poderia ser feliz se estivesse em algum relacionamento. É talvez por isso que o desfecho tenha sido tão melancólico para mim: mesmo sobrevivendo ao inferno, tendo encontrado forças para se reerguer, ainda assim Olga ainda depende da ilusão do casal formando a felicidade. Melancólico, porém bastante real, vale dizer.

Mas de todo o livro acho que o momento que foi quase de tirar o fôlego, aquele que eu tenho certeza que lembrarei depois de muitos anos, foi o (já esperado) encontro de Olga com a amante. Há algo que Elena Ferrante faz aqui que é simplesmente genial: lembrando, a voz que narra o romance é de Olga. Quando ela encontra o marido com a amante na rua, o que parecia um discurso até razoavelmente contido dado tudo o que já tinha acontecido até ali, de repente vira um rio caudaloso. Parágrafos enormes com pensamentos se embaralhando, tudo ao mesmo tempo, tudo rápido, como se ela quase nem parasse para respirar. E é até engraçado que isso aconteça nesse momento, porque em várias passagens em que ela tenta recuperar o controle, Olga usa termos relacionados ao trabalho como escritora, como por exemplo “Turn the page, Olga, begin again from the beginning.” ou “Eliminate the exclamation points. He’s gone, you’re still here“.

Capa da edição estrangeira

Por causa de passagens assim não consigo deixar de pensar que mais do que a perda do marido, o que dói em Olga são os anos dedicados a uma história que não acabou como ela queria. Anos que ela poderia ter usado para outro fim (mesmo o ato de escrever) e que não voltariam mesmo que Mario voltasse para ela, porque o estrago já estava feito.

Já que inicialmente falei da questão da identidade da autora, vale dizer que muitos insistem que trata-se de uma mulher porque um homem não conseguiria captar tão bem o íntimo feminino. Porém, deixo a pergunta: por que seria tão difícil para um homem retratar o íntimo feminino, se temos uma galeria de mulheres escritoras que escrevem romances com homens como protagonistas e que, em momento algum, são criticadas por não criarem um retrato fiel do íntimo masculino (citando exemplo do ano passado, Donna Tartt com O Pintassilgo, e a Adelle Waldman com o The Love Affairs of Nathaniel P.). Escrever e ler não é de certa forma um exercício de empatia? Fico com a sensação de que dizer que esse livro “só pode ter sido escrito por mulher” meio que de certa forma implica em dizer também “só pode ser lido por mulher”. Não é bem assim.

Mas ok, não transformarei o post em um manifesto, vou só plantar a dúvida mesmo. E para quem ficou curioso sobre a Elena Ferrante, vão aí uns links para saber um pouco mais.

 

3 comentários em “Dias de abandono (Elena Ferrante)”

    1. se my brilliant friend cair no gosto do pessoal deve sair os que não são relacionados à série, acho. mas tem tanta coisa que lá fora o público parece completamente apaixonado e que aqui nem faz tanto barulho, difícil entender ou prever =/

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