O fato é que eu notei uma semelhança grande na forma de desenvolver a história nessas duas obras, por mais que O Escolhido Foi Você não seja ficção. Duh, sim, óbvio, é a mesma autora, Anica. Calma, já explico. Quando você compara The First Bad Man com O Escolhido Foi Você dá para perceber que Miranda July não tem lá muita pressa de chegar onde realmente interessa. Para quem já leu o Escolhido, vale lembrar: páginas e páginas com boas histórias sobre os vendedores do PennySaver, para finalmente chegar na do velhinho que a tocou de tal maneira que ela até quer incluí-lo no filme que estava fazendo. Não que as outras histórias não fossem boas ou não estivessem conectadas ao encontro em questão. É só que o livro pareceu se transformar e ganhar uma força enorme a partir dali.
The First Bad Man segue o mesmo estilo. Somos apresentados à Cheryl, uma mulher solitária de 40 anos com uma vida completamente insana e um jeito bem atípico de encará-la, vale dizer. A primeira metade do livro é uma maluquice só, divertidíssimo – com aquelas sacadas da autora sobre questões do cotidiano que te fazem pensar “Ah, eu não sou a única pessoa a pensar isso?” (lembra quando você se achava super especial por gostar de Londres, café e chuva e aí descobriu uma comunidade com 10000000 membros no orkut chamada Amo Londres, café e chuva? Sensação parecida).
Algumas das situações vividas pela protagonista são tão nonsense que não tem como segurar a risada ou, ok, no mínimo um sorriso no canto da boca. A paixão dela por Philip, um cara de 60 anos que ela jura já conhecer de outras vidas e por quem está completamente apaixonada, e que fica enviando para o celular dela mensagens com descrições cheias de detalhes dos encontros com uma menina de 16 anos. A relação telepática com bebês que ela pensa ser Kubelko Bondy, de quem ela foi separada quando criança e acredita que agora esteja renascendo constantemente até ser filho dela. Os chefes meio malucos impondo regras estranhas na empresa em que trabalha. Os encontros com a psiquiatra que é sub do médico que trabalha no mesmo consultório, etc. Tudo ali tem um leve toque de algo fora da ordem – mesmo que as pessoas ao redor vejam em Cheryl um exemplo de mulher com a vida nos eixos.
E é nesse contexto que Cee chega na vida de Cheryl. Filha dos chefes, cerca de 20 anos e aparentemente insuportável (ninguém quer hospedá-la, o que já é uma boa dica sobre a índole da menina), ela passa a se hospedar na casa de Cheryl quebrando toda a rotina estabelecida após anos de solidão. A relação não começa bem, passa por um momento em que o diálogo entre elas só é possível quando começam a “simular” as lutas dos videos de auto-defesa feitos na empresa em que Cheryl trabalha. Sim, é estranho e fica ainda mais, quando no meio dessas lutas a protagonista passa a imaginar Philip fazendo com Cee o que ele descreve estar fazendo com a menina de 16 anos. Você pensa que o livro seguirá esse caminho, até que…
… até que Cee fica grávida.
É aqui que The First Bad Man muda completamente. Sim, Miranda July tem uma mão boa para escrever sobre o cotidiano, melhor ainda para o cômico. Mas surpreende sempre como ela consegue falar tão bem de sentimentos que costumamos deixar guardados lá no fundo, e talvez até por isso não saibamos expressar tão bem.
A relação de Cheryl e Cee se transforma, e não apenas uma vez. Primeiro são as lutas, depois ela passa a ser um tipo de mãe, depois de esposa. E considerando aquilo que já vimos anteriormente sobre Kubelko Bondy, era de se esperar que ela imediatamente se agarrasse à oportunidade de cuidar de Jack, o filho de Cee. Só não dá para antecipar que o laço desenvolvido com o bebê pudesse ser tão intenso.
E é aí que entra a importância da primeira metade do livro, embora o tom pareça tão dissonante do restante: você agora já conhece Cheryl. Sabe o que ela deseja, como ela encara a vida – e então alguns momentos passam a ser tão fortes, que mesmo nas conversas telepáticas com o bebê – que antes eram pura bizarrice, passam a ter um tom de ternura:
Of course, there’s no “right” choice. If you choose death I won’t be mad. I’ve wanted to choose it myself a few times.
His giant black eyes strained upward, toward the beckoning fluorescent lights.
You know what? Forget what I just said. You’re already a part of this. You will eat, you will laugh at stupid things, you will stay up all night just to see what it feels like, you will fall painfully in love, you will have babies of your own, you will doubt and regret and yearn and keep a secret. You will get old and decrepit, and you will die, exhausted of all that living. That is when you get to die. Not now.
Até a relação entre Cheryl e Cee, embora inicialmente apenas estranha, torna-se algo complexo e bonito. Como leitor você consegue entender exatamente o que está acontecendo, e onde aquilo tudo vai levar, o que talvez até aumente o encantamento pelo modo como Cheryl trata Cee, ou de compreender o medo e as inseguranças da personagem.
E aí que eu poderia ficar aqui citando trechos e mais trechos e mais trechos porque realmente é um daqueles livros que você começa a grifar loucamente, de como muito do que seria pessoal (pertencente apenas a uma personagem atípica, nada convencional) passa a ser algo com o que várias pessoas possam se relacionar, compreender. Eu tenho uma leve desconfiança que a parte envolvendo a maternidade toque mais profundamente pessoas que já tiveram filhos (ênfase para pessoas – não é sobre ser mãe biológica), mas considerando toda a jornada de Cheryl até ali, não é necessário ter experiência no assunto para entender os sentimentos que ela busca expor.
If you were wise enough to know that this life would consist mostly of letting go of things you wanted, then why not get good at the letting go, rather than trying to have? These exotic revelations bubbled up involuntary and I began to understand that sleeplessness and vigilance and constant feedings were a form of brainwashing, a process by which my old self was being molded, slowly but with a steady force, into a new shape: a mother. It hurt. I tried to be conscious while it happened, like watching my own surgery. I hoped to retain a tine corner of the old me, just enough to warn other women with. But I knew this was unlikely; when the process was complete I wouldn’t have anything left to complain with, it wouldn’t hurt anymore, I wouldn’t remember.
Em uma nota completamente aleatória, adorei o modo como Miranda July coloca a impressão que o pai do garoto tem dele quando o conhece:
“I doubt he’s mine. You know how I know? I don’t feel anything here.” He jabbed his chest with stiff fingers; it made a hollow sound.
(grifo meu)
Deixa claro o principal: para ser pai ou mãe não é preciso uma conexão mágica ou genética. Você precisa ter amor dentro de você. Se você é oco por dentro, não há criança, nem nenhuma outra pessoa que te encante.
E antes que eu me esqueça, a Izze disse que o livro sairá pela Companhia das Letras este ano então ieeei, todo mundo feliz (no link tem além da informação da Izze tem um video da Miranda July lendo um trecho do livro, eu clicaria se fosse você).
Eu li O Escolhido foi Você numa época complicadinha de baby blues e me fez tão bem… Que delícia de livro. Daí vi um filme dela e detestei, então não posso dizer que seja fã da Miranda July, mas fiquei com muita vontade de ler esse. Já vi que tem pro Kindle, vou atrás certo 😉
Nossa, Dani! Lembrei de você enquanto lia, justamente por tocar tão forte na questão da maternidade. Depois que ler me conta o que achou =]