E aí passou um dia, outro, e outro. E eu ainda com o livro na cabeça. Não que eu estivesse buscando motivos para gostar da obra (não teria nenhuma razão para isso), é mais que eu não conseguia afastar a impressão de que as tais das migalhas tinham sim um destino, digamos assim. Aí caiu a ficha e meio que revisei minha opinião sobre Nobody is Ever Missing. E claro, este post estará cheio de spoilers porque vou passar minha interpretação do romance.
Aviso dado, vamos lá. Elyria, a narradora, tem 28 anos, um bom emprego, um bom marido, uma boa casa e uma boa vida em Nova York. Mesmo assim, ela abandona tudo e vai para a Nova Zelândia, tendo como plano inicial aceitar o convite de um escritor de passar uns dias na fazenda dele mas, na realidade, completamente perdida e sem noção do que fazer de sua vida.
Veja bem: são 256 páginas e desde o início a voz da narradora tem tintas da mais completa loucura. As observações que ela faz enquanto tenta chegar na fazenda são um misto de beleza e estranheza. E mostram que Elyria é alguém que não está exatamente vivendo um bom momento. Já no começo, ao ver uma ovelha se afastando, ela comenta “I would run away from me, too, if I was a sheep and not me and even if I was me, I’d still like, some mornings, to be the thing running far from me instead of sewn inside myself forever“.
E é interessante observar como ao longo da narrativa o passado vai sendo mesclado ao presente nos pensamentos de Elyria, e aos poucos vamos conhecendo sua vida e tentando descobrir o que fez com que ela abandonasse sua vida perfeita. Porque ela vai se apresentando (como nesse trecho da ovelha) como alguém perigoso, alguém vazio de sentimento, alguém que não consegue se conectar, o que nos faz pensar o óbvio, que ela fugiu porque estava louca.
Há, já próximo da conclusão, um momento em que um policial ou qualquer figura do tipo (agora não lembro exatamente a função), faz exatamente a pergunta que o leitor fez durante todo o livro: se sua vida é perfeita, por que você fez isso? Por que fugiu?
E aí ter como resposta a loucura de Elyria que fez com que eu ficasse decepcionada. Porque não podia ser isso. E aquelas frases largadas sobre o marido no meio de devaneios sobre as coisas que via na estrada? Essas eram as migalhas das quais falei inicialmente. Não encaixava. “Ela é louca, estava imaginando isso tudo”. Por exemplo:
She fell down the stairs, he said ,I fell down the stairs, I said, and isn’t that what people say has happened when that is exactly what hasn’t happened?
E:
(…) but that was before the choking began, before the nights his hands would creep across my collarbone and tighten around my neck, and though it usually only took a few small hits to his chest or face to make him stop, a few nights I had to hit him harder than what seemed safe and though he never shut my trachea long enough for me to pass out he sometimes came close, pressing down for a moment, a wink in my throat.
E veja bem, não era só um abuso físico, mas psicológico também. A conversa no carro com uma senhora rende uma passagem em que a narradora fala de enfiar uma faca no rosto como uma expressão física do que sentia em seu relacionamento. E então conclui:
I didn’t have to feel any of those feelings anymore because I had left my husband and our arguments and my chef’s knife and I had come to this country where I could laugh, so gently, gently laugh at things that were actually not funny.
Não era um descontentamento pequeno da vida em casal do tipo “ele larga toalha molhada na cama”, não é algo contornável com uma conversa. O tempo da gentileza já tinha passado para o casal – uma faca no rosto representando a dor que você sente por aquilo tudo é um claro sinal de que aquele relacionamento estava sendo prejudicial para Elyria. Tóxico. Não à toa seu comportamento na Nova Zelândia beira ao suicida como quando aceita carona de estranhos mesmo sabendo que em qualquer lugar do mundo há riscos. “It just isn’t safe to be a woman or a girl anywhere anymore“.
Como é que o leitor pode abandonar isso aceitando tão prontamente a loucura da narradora? Considerando como o marido reage à fuga de Elyria (corta o cartão de crédito, pede para que ela não ligue mais, mais além diz para as autoridades da Nova Zelândia que ela é louca, tira todo ou qualquer vestígio dela do apartamento e a chuta para fora quando ela retorna, etc.), a realidade é que eu acabei me sentindo mal por ter concluído o mesmo que o policial, que se ela abandonara a vida perfeita ela era doida.
Porque a vida dela não era perfeita. Ela vivia um relacionamento abusivo, e, como muitas vítimas de violência doméstica, era forçada a ver a figura maior: você tem um bom lar, um bom emprego. Você não tem do que reclamar.
E aí o curioso é você ler as resenhas no Goodreads e ver “resenhas” como essa:
E fica na dúvida se a pessoa interpretou a história da mesma forma que você e está sendo irônica ou se ela é mais uma das ‘n’ pessoas que acham que uma mulher é uma maluca egoísta se não agrada o marido abusivo “como deveria”.
Enfim, Nobody is Ever Missing pode não entrar exatamente em uma lista de favoritos, mas eu dificilmente esquecerei dessa experiência de leitura.
Adoro essa capa. Lembra uma cena de “As Horas”.
Li tudinho. Doeu. Fiquei com vontade de ler, apesar de saber que não é 100%. Quero prestar atenção nesses detalhes.
Você precisa ler Operação Impensável pra conversar comigo.
Tuuuca, onde consigo esse livro?! Só na Biblioteca Pública? Estou louca atrás dele, desde aquele dia que você passou aquele link com um trecho eu entrei naquele modo OMGPRECISOLERESSELIVRO hahaha