E aí eu comecei a ler, fechei meu top5 de leituras e agora queimei a língua e vou ter que colocar uma bônus track para a Dona Moran porque olha, garrei morzinho no livro. Antes de começar a falar dele, preciso avisar que: a) não acho que seja um livro para todo tipo de público. Já li resenha de gente que ficou ofendida com o senso de humor da autora, por exemplo. b) ele é um livro simples, que te ganha pelas ideias. c) além das ideias, é provável que role uma identificação se você foi um adolescente meio bizarro.
Bom, eu fui esse tipo de adolescente. Já devo ter comentado por aqui – demorei um tanto para entrar no ritmo que meus amigos já estavam. Aos quatorze tinha na bagagem mais leituras e amores platônicos do que beijos e histórias próprias para contar. Então, inicialmente o que me prendeu ao relato confessional de Johanna Morrigan era aquela sensação de “I know that feel sis“, digamos assim. Ela era mais uma adolescente ouvindo música, lendo e escrevendo, trancada em um quarto, esperando que algo acontecesse. Há ainda nessa primeira parte do livro toda uma dose de inocência ainda infantil, mas já dá para notar uma característica importante no estilo de Moran, que é o humor, aquela coisa da personagem que sabe rir de si. Mas mais do que isso, é ali que percebemos que a narradora também é dona de uma honestidade enorme.
Because my biggest secret of all – the one I would rather die than tell, the one I wouldn’t even put in my diary – is that I really, truly, in my heart, want to be beautiful. I want to be beautiful so much – because it will keep me safe, and keep me lucky, and it’s too exhausting not to be.
Assim é a narradora Johanna. O livro começa quando ela está mais ou menos na casa dos quatorze anos, e por acreditar ter colocado a família em dificuldades financeiras, ela resolve que precisa começar a ganhar dinheiro. Johanna vive em Wolverhampton com os pais e mais quatro irmãos, dependendo de benefícios que aqui no Brasil equivalem um pouco a uma aposentadoria por invalidez no INSS e o Bolsa Família. Como deu para perceber na citação, ela não é bonita. Não tem muitos amigos e não tem muita noção também. Tem zero de experiência em situações sociais e nunca antes tinha arrumado um emprego. Mas ela sabe escrever, e está apaixonada por música – é aí que ela vê a solução: escrever sobre bandas para tentar ajudar a família.
Poor people can write. It’s one of the few things poverty, and lack of connections, cannot stop you doing.
Tudo bem que a sorte que a protagonista teve não chega para qualquer um – Johanna é quase imediatamente contratada por uma revista de música de Londres. Inicia escrevendo alguns textos curtos, mas logo entrevista músicos e começa a receber CDs e mais CDs em casa para avaliar (impossível aqui não traçar um paralelo com essa coisa de blogueiro literário…). Mas mesmo assim, o lugar que ela conquista dentro da revista e da cena musical inglesa tem um preço: não é Johanna Morrigan, mas a personagem que ela inventa para si que trabalha na revista, Dolly Wilde. Ela é aceita em um mundo sem poder ser ela mesma.
E Johanna/Dolly como qualquer adolescente fica deslumbrada com esse novo mundo. De alguém que nunca tinha sido beijada ela passa a acumular um punhado de histórias (engraçadíssimas) sobre aventuras amorosas. Começa a beber, fumar e usa drogas. Tem suas primeiras experiências saindo à noite (o capítulo sobre a primeira vez em um show, quando dança na frente do palco ao som dos Smashing Pumpkins é genial). Nesse sentido lembrei muito de um momento da HQ Como Matar Seu Namorado, de Grant Morrison:
Começa aí um outro momento do livro, um “coming of age” marcado principalmente pelas descobertas sexuais de Johanna. E lógico que o melhor dessa parte é o efeito causado pela combinação de senso de humor e honestidade (há trechos em que eu gargalhei), mas gosto principalmente como o amadurecimento de Johanna está ao mesmo tempo conectado a um assunto que sempre vale a pena trazer para a literatura: o prazer negado à mulher por uma sociedade machista. Johanna questiona o modo como o sexo funciona de jeito diferente para homens e mulheres (você sabe, o básico: ela não teria chegado virgem e morrendo de vontade de transar aos 17 se pudesse simplesmente contratar um garoto de programa como os homens podem fazer. Ou ainda, o velho “por que homens são pegadores e mulheres são galinhas?”).
But Al’s asleep, and so the only sex I’m going to have is with me. I chat myself up for ten minutes, and then come – hard, like a car-crash, trying to be silent – next to him.
I wonder how many dead men I’m going to come next to, in the next ten years, I think. How many times I will come alone, next to a still not-friend, whilst the pale ghost moon watches, through the window, and sighs.
Não pense que Johanna fica dando sermões ou desenvolvendo teorias de modo entediante ao longo da história. Acho que a essa altura já deu para entender que a palavra que marca How To Build a Girl é diversão. O negócio é que não tem como não refletir sobre as questões que ela levanta. A personagem faz uma série de burradas (lembra, “sem noção”?), mas é até emocionante ver a guria crescendo e chegando naquele momento em que aprende que pode dizer não, que pode não se machucar e que, aliás, sexo e amor não é sobre dor ou fingimento.
Paralelamente há ainda o trabalho de Johanna, que acaba trazendo algumas ideias sobre qual é o papel do crítico. Lembrando: Johanna começa a escrever como uma apaixonada por música. Logo os trabalhos começam a ficar raros, até que ela adota uma postura semelhante a de um colega, de sempre desancar os músicos sobre os quais escreve. “Não seja uma fã, seja uma crítica”, alguém lhe sugere. Ela para de escrever sobre as bandas que gosta para poder falar (sempre MUITO mal) das que não gosta.
Desnecessário dizer que assim como a fama vem rápido (e os trabalhos aumentam), vai crescendo a antipatia das pessoas do meio pela garota. O momento em que ela se dá conta que é o cinismo que usa como arma para sobreviver como crítica, é um dos pontos altos do livro (e vou colar imagem da passagem em questão aqui, preguizzz de digitar tudo isso):
Tem ainda os trechos envolvendo a amizade dela com o músico John Kite que são de arrancar nhóóóunnnns. Então assim, é um livro que tem de tudo, sabe como? Tipo embarcar em uma montanha russa. Como falei lá no começo: não recomendo para todo mundo porque é um tipo de senso de humor que pode não descer bem para algumas pessoas. Conheço gente que – com razão – se ofenderia muito ao ver uma cena de automutilação virando piada, mas eu confesso que simplesmente morri de rir por causa do modo como a Moran escreveu a passagem toda, incluindo aí um momento em que a personagem vê que ao se cortar sem querer escreveu NWA no braço.
De qualquer forma, pelo menos para mim foi um livro que falou muito e divertiu muito. E mereceu um cantinho ali entre os melhores, mesmo que chegando assim, no finzinho do ano.
ATUALIZADO EM 16/06/2015: Chegou pela Companhia das Letras a edição brasileira de How To Build a Girl. Por aqui o nome é Do que é feita uma garota.