Sei que é estranho abrir um post com uma citação de uma hq. Mas enquanto ia me aproximando do final de Stoner (1965) imediatamente lembrei desse trecho de A Piada Mortal, escrito pelo Alan Moore. O homem comum. William Stoner, o protagonista, é apenas isso, um homem comum. Não há nada de extraordinário em suas ações ou em sua vida. Como já nos primeiros parágrafos o narrador deixa bem evidente:
Stoner’s colleagues, who held him in no particular esteem when he was alive, speak of him rarely now; to the older ones, his name is a reminder of the end that awaits them all, and to the younger ones it is merely a sound which evokes no sense of past and no identity with which they can associate themselves and their careers.
Stoner vive muito dos seus primeiros anos como que no piloto automático. Trabalha na fazenda com o pai, um serviço pesado que ele fazia sem qualquer reclamação porque bem, era o que tinha que ser feito. Surge então uma oportunidade de estudar agronomia na universidade, e ele vai – mais porque o pai acha que será bom para a fazenda deles do que por ele realmente ter alguma vontade em especial sobre isso.
E de fato, o primeiro ano da faculdade segue sem qualquer grande interesse: ele tira as notas que precisa tirar, faz o que tem que ser feito – como já era na fazenda do pai. Até que um dia tem que cursar uma matéria obrigatória de inglês, e em sala de aula um professor fala de um soneto de Shakespeare. Aquilo mexe com Stoner de tal maneira que ele larga Agronomia e muda sua habilitação para Literatura – ele quer mais, mais daquela sensação que a leitura daquele soneto causou.
Nesse ponto do livro (ainda uns 10% de acordo com o kindle) achei que ele tomaria um rumo em que descreveria a vida de uma pessoa apaixonada pela Literatura e já tinha certeza de que seria um livro que eu iria gostar. Cheguei até a compartilhar um trecho onde Stoner tem a revelação de que deve ser um professor, porque aquilo fala muito alto para todo mundo que resolveu seguir esse caminho – não necessariamente pela Literatura, mas qualquer área pela qual a pessoa se apaixone. Porque aquela foi sim a primeira paixão de Stoner. Mas após esse primeiro movimento arriscado em uma vida até então dominada pela inércia, a narrativa segue algumas páginas bastante monótonas, refletindo, de certa forma, a monotonia constantemente ligada ao protagonista.
Não entenda mal: ele se apaixona de novo, dessa vez por Edith, com quem se casa. Mas o momento em que John Williams faz a base onde se desenvolveria de fato a história da vida de sua personagem, descrevendo o começo da vida de casado e da vida de professor é marcado por uma certa decepção (ou ainda, a noção de que não basta estar apaixonado) e recheado de momentos completamente ordinários. Quer dizer, APARENTEMENTE ordinários. Como disse, é a base da história de Stoner.
Nesse momento da leitura, cheguei a me policiar pensando “Anica, não seja bocó, só porque o McEwan e o Hornby gostaram não significa que você não possa não gostar”. Não é exatamente que eu não estivesse gostando, eu só não entendi muito porque tanta admiração por uma história tão simples. Bem escrita, isso é indiscutível – mas sem nenhum recurso narrativo que a diferenciasse, nem nada no enredo que fosse realmente espetacular. E então um tanto antes da metade, há uma mudança na história e eu começo a entender a admiração geral pelo livro. Por mudança na história não estou dizendo reviravolta. Stoner é uma personagem previsível, não há nada de imprevisível para acontecer.
Porém, enquanto antes ser o cara quieto e retraído lhe bastava (ok, não no casamento, mas no geral até que era uma atitude que funcionava), chega um momento em que ele começa a levar cacetada atrás de cacetada. E aí é que vem a jogada de Williams: você já conheceu Stoner. Sabe que ele não é um sujeito cheio de ambição, sabe que ele não quer ferrar ninguém, nem quer nada de muito especial além do amor de sua família e disponibilidade para seus estudos de Literatura para que seja um bom professor. E quando as pessoas começam a ser cruéis com ele, você se prende ao livro esperando que ele reaja, que faça algo, que revide.
As “cacetadas” partem principalmente de duas personagens: Edith (a esposa) e Lomax (um colega de trabalho). Confesso que Edith permanece um mistério para mim. Não entendi o que fez com que ela casasse com Stoner, se desde o início ela parece não gostar dele. Todo o momento que antecede o casamento me passou uma ideia de que ela tinha engravidado de outro homem e usaria Stoner para se manter como “moça direita” (vale lembrar, esse primeiro momento acontece ainda no início do século XX). Mas então vem o narrador e diz que ambos são virgens e eu me perco completamente. Por que ela aceitou casar? Por que ela o odeia tanto?
Já o antagonismo de Lomax embora dê as caras já nos primeiros momentos em que Stoner tenta uma amizade com o sujeito, ainda assim acaba se delineando por conta de um conflito na universidade que é bastante claro (e meu deus, como é injusto e como você tem vontade de abraçar Stoner e dizer que vai ficar tudo bem).
É aí que entendi o encanto de Stoner. Ele mexe com o leitor, de um jeito quase sádico: você não pode interferir, não pode fazer nada pela personagem. Não que ele seja um sujeito bonzinho. Defeitos também fazem parte do pacote do “homem comum”, e Stoner para começar é teimoso pra diabo. Mas quando em um determinado momento ele diz para um amigo do tempo de estudante que não pode jogar o jogo de politicagem da universidade, você entende parte dessa teimosia:
The three of us were together, and he said something about the University being an asylum, a refuge from the world, for the dispossessed, the crippled. But he didn’t mean Walker. Dave would have thought of Walker as – as the world. And we can’t let him in. For if we do, we become like the world, just as unreal, just as… The only hope is to keep him out.
E os anos vão passando e ele vai tomando suas bordoadas, em alguns casos aceitando sem qualquer protesto, outras sendo inteligente e nos surpreendendo tanto quanto as personagens com quem convive (o plano para voltar a dar as aulas que gostava de dar é ótimo). E a medida que ele vai chegando ao fim de sua vida, começa a questionar tudo o que vivera – é curioso que justamente após a filha dizer que foi tudo uma decepção. “What did you expect?” ele começa a pensar, no meio de um delírio.
Foram mais de sessenta anos, e ele passou esse tempo todo apenas se deixando levar. E o lindo, o que te faz se encantar de vez por esse livro, é o que faz com que ele perceba que sua vida não foram só decepções, ou ainda, que ele deixara sua marca: fraco, ele procura um livro que publicara ainda no início de sua carreira na universidade. Através da literatura, sua primeira paixão, ele foi alguém menos infeliz. Não é de admirar que um dos momentos mais tocantes da história é quando ele vê que um livro escrito por alguém importante em sua vida é “dedicado a W.S.”.
Então, se você um dia resolver ler e também acabar achando que o livro está sem graça ali no começo, não desista. É bonito, de um jeito que só histórias simples podem ser.
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Resolvi começar direto falando do livro e sem as devidas apresentações, mas deixo aqui algumas informações para quem ficar curioso.
Stoner foi originalmente publicado em 1965. Não foi sucesso de vendas, caiu no gosto de alguns poucos críticos e depois foi esquecido, sendo resgatado novamente apenas em 2006, com uma nova edição que saiu pela NYRB. Como já expliquei, fiquei sabendo sobre ele após uma série de coincidências, e olha, só posso dizer que fico feliz pela mensagem dos deuses dos livros porque é o tipo de obra que eu dificilmente acabaria conhecendo pelos meios comuns.
ATUALIZADO 07/02/2015: Nem sei como foi que demorei tanto para atualizar esse post, já que assim que fiquei sabendo da Rádio Londres fiquei toda empolgada. De qualquer forma: para todos que ficaram com vontade de ler Stoner, ele chegou no Brasil pela Rádio Londres agora no começo de 2015. Corre e leia logo esse livro, pequeno gafanhoto. 🙂