The Goldfinch (Donna Tartt)

The_goldfinch_by_donna_tartVocê sabe como funciona: você está lá de boa com seus livros, aos poucos riscando títulos da lista de leituras pendentes, quando DO NADA começam a falar de um livro em especial. Sites que você costuma ler apontam a obra como melhor do ano, prêmio aqui, prêmio acolá e pronto, curiosidade lá no alto, e algo que deveria ir para o fim da fila como todos os livros novos que as pessoas sugerem para você, sobe lá para o topo, vira prioridade.

Foi o que aconteceu comigo e com The Goldfinch de Donna Tartt, o queridinho do ano passado que agora em 2014 chegou a ganhar um Pulitzer. Ok, confesso (com vergonha): não sem antes uma certa dose de preguiça para encarar as quase 800 páginas do catatau em questão. Vou comentar sobre a questão do tamanho mais além, por enquanto fiquemos assim: terminei o livro no sábado e ainda não consegui organizar bem minhas ideias sobre ele, o que significa que escreverei caoticamente (as usual) e que o post poderá conter spoilers, mas embora eu ache frescura essa coisa de spoiler, ainda assim sou uma ~~cidadã de bem~~ e aviso antes, então né, ufa, a barra tá limpa. Ei? Que foi? Desculpa, não quis te chamar de fresco. Vem cá, me dá um abraço. Pronto, pronto, passou.

Então, The Goldfinch. Vamos começar com o que todo mundo já deve saber sobre o livro: a história segue um tom confessional, sendo narrada por um Theo Decker já adulto observando os eventos de sua vida desde o dia em que sua mãe morreu. Acho mais “honesto” descrever o livro assim do que falar sobre o fato de que no dia em que sua mãe morre, Theo Decker “rouba” de um museu um quadro de valor inestimável (sim, The Goldfinch), porque isso passa a falsa impressão de que o que você lerá em 800 e tantas páginas será um suspense envolvendo o roubo (ele devolverá o quadro? quando? o que acontecerá com o quadro?).

Não. Muito embora o quadro dê o nome ao livro e de certa forma esteja sempre por ali, não é o destino dele o principal. O principal é o destino de Theo Decker, porque ao longo de toda a obra o que ele parece estar tentando fazer é (bem dom casmurramente) “atar as duas pontas da vida”. Quer procurar na juventude o que fez dele o Theo Decker adulto, tentar compreender como chegou até aquele ponto. É por isso que vamos acompanhá-lo por anos sem sequer ouvir menção ao quadro. A impressão que fica do testemunho da personagem é que o evento que de fato muda sua vida é a morte da mãe, havendo apenas a coincidência de que o roubo do quadro acabou fazendo parte desse dia.

E é daí que vem o charme de The Goldfinch.  Do mesmo modo que o passarinho de Fabritius parece quase de verdade, Theo Decker também. Como se nos encarasse, o pé preso por uma corrente que ele ora vê como culpa, ora vê como o destino. Theo observa o que fez com que ele e sua mãe estivessem no museu na hora de um atentado terrorista e se culpa. Se não fosse colega de um sujeito que o colocou em apuros na escola, sua mãe não teria que ir conversar com a diretora naquele dia de chuva, não teria passado pelo museu para se esconder da chuva, não teria… enfim, dá para ter uma ideia. Todos nós em algum momento já paramos para observar nossa vida de um ponto mais distante, fazendo um levantamento de “ses”. Como um Theo já adulto fala para uma garota que também fazia seu levantamento de “ses”:

I think maybe it’s more like a column of figures where you add two numbers wrong at the start, and it throws the total. If you trace it back, you can see the mistake – the point where you would have a different outcome.

E é o que ele tenta fazer, ver onde no passado ele poderia alterar seu presente. E é por isso que apesar de o livro ser dividido em cinco partes, eu o vejo dividido em dois: o Theo adolescente (ciclo que por coincidência se encerra mais ou menos na metade do livro) e o Theo após um salto de oito anos no tempo, já adulto e próximo da hora em que ele passa a escrever o relato.

A primeira parte é o que provavelmente justifica o uso constante do termo “dickensian” nas resenhas estrangeiras para falar do livro. Não só pelo elemento “garoto órfão”, mais pela natureza episódica da narrativa: pequenos conflitos vão surgindo e sendo resolvidos, emprestando ritmo para a história que poderia ser arrastadíssima. Inicialmente vemos Theo após o atentado, o medo de ser entregue à um orfanato,  a vida com a excêntrica família Barbour, a aproximação com Hobie, parceiro do homem que pediu para Theo que salvasse o quadro de Fabritius do incêndio. Depois disso, reviravolta e lá vem mais uma galeria de personagens, o pai de Theo, a madrasta Xandra, o amigo Boris, uma adolescência recheada de pequenos roubos e muitas bebidas e drogas. Sendo bem sincera, essa primeira metade foi a que mais me encantou, talvez justamente por podermos conhecer as personagens, pelo modo como Tartt não tem pressa de ir desenvolvendo aos poucos cada um deles.

Aqui, aliás, entra a questão do tamanho do livro. Eu vi muita crítica apontando que o tamanho era desnecessário, “punheta de escritor”, digamos assim. E o negócio é que mesmo que em alguns momentos eu tenha ficado meio entendiada (mas isso porque Theo vira um cara com tanto dó de si mesmo que se ele fosse seu amigo você já teria indicado um analista ou algo que o valha), ainda assim não vi excesso no livro. Há uma razão de ser para o que está ali porque, volto a lembrar, Theo está tentando reconstruir a “imagem” de sua vida, para se compreender. E nesse ato introspectivo, é natural que recordemos de pequenos diálogos que pareciam não dizer nada, mas que lá para frente farão todo o sentido. Do mesmo modo que ele ficou maníaco com a sequência de “ses” que acreditava ter causado a morte da mãe, ele buscava a sequência de “ses” que transformou o gurizinho inteligente que vivia em Manhattan num sujeito completamente dependente de drogas, com um apreço muito maior pela ideia da própria morte do que de um planejamento de vida.

Nessa reconstrução, Tartt ainda brincará um pouco com o leitor na questão das expectativas. Lembrando, o quadro não é o principal, mas ele está ali. E então aos poucos você fica esperando que pessoas que se apresentam como “boas” para Theo em algum momento o prejudiquem, mais até do que as pessoas que Theo não faz a menor questão de esconder que detesta. Senta que lá vem spoiler:

SPOILER!
Eu, por exemplo, tinha certeza que Hobie estaria de alguma forma envolvido na pressão que Lucius Reeve estava fazendo sobre o quadro, porque na minha cabeça um cara “não podia ser tão legal assim”. Mesma coisa com o Boris, ficava esperando a hora em que aquele papo todo de recuperar o quadro para Theo fosse só parte de um plano. A parte mais engraçada é que eu pensava isso já na segunda metade do livro, independente de na primeira metade, em conversa sobre Hobie, o próprio Boris fale para Theo “Who cares? If he is good to you? None of us ever find enough kindness in the world, do we?”.

E eu fico com a impressão de que se o livro fosse mais curto, alguns trechos não tocariam tão fundo no leitor. A morte da mãe de Theo dá uma boa amostra de como Tartt domina bem a narrativa, conseguindo destruir seu coração sem ser piegas, mas lá para frente outros eventos ocorrerão que mostrarão porque desenvolver bem outras personagens se fazia tão necessário. Até porque não teríamos surpresas sobre o que acontece com algumas delas no momento presente de Theo se nós não a conhecêssemos desde o primeiro momento. Uma coisa é você avaliar uma pessoa pelo que ela está fazendo com você agora, outra completamente diferente é levar em conta também tudo o que já foi feito antes.

Spoiler
Nesse sentido, o que fala mais alto para mim é a relação de Theo com Boris. Sabe, o engraçado é que Theo é completamente obcecado pela garota Pippa desde o começo, mas para mim a grande história de amor ali é entre ele e Boris. Da cumplicidade que se estabelece tão rapidamente mesmo que sejam tão diferentes. Da sutileza de Tartt ao descrever o momento em que exploraram sua sexualidade, e a beleza da despedida na metade do livro:

But I didn’t. And, in truth, it was maybe better that I didn’t – I say it now, though it was something I regretted bitterly for a while. More than anything I was relieved that in my unfamiliar babbling-and-wanting-to-talk state I’d stopped myself from blurting the thing on the edge of my tongue, the thing I’d never said, even though it was something we both knew well enough without me sayint it out loud to him in the street- which was, of course, I love you.

E é por passagens (e personagens) assim que eu acho que o livro vale cada palavra. Porque aos poucos Tartt vai nos tocando de tal forma que quando você chega ao ponto principal do que seria a segunda metade, você sabe EXATAMENTE o que ela quer dizer.

Já no presente, Theo começa a questionar sua relação com o quadro The Goldfinch, ou, mais precisamente, com a arte. Em seus diálogos Tartt usa o exemplo das pinturas, de como uma imagem pode falar com pessoas séculos e séculos depois, mas é fácil transportar a comparação para nossa relação com a literatura. Não falo de The Goldfinch em específico – não conheço a escritora, mas não acho que seja uma questão de ter um ego de um tamanho de um bonde achando que todo mundo vai amar o livro – é que ela como artista sabe que a arte tem disso, de passar completamente batido para algumas pessoas, mas ter as notas exatas para tocar outras. Como diz Hobie (citação longa, mas não poderia deixá-la de fora):

What’s to say? Great paintings – people flock to see them, they draw crowds, they’re reproduced endlessly on coffee mugs and mouse pads and anything-you-like. And, I count myself in the following, you can have a lifetime of perfectly sincere museum-going where you traipse around enjoying everything and then go out and have some lunch. But if a painting really works down in your heart and changes the way you see, and think, and feel, you don’t think ‘oh, I love this picture because is universal.’ ‘I love this painting because it speaks to all mankind.’ That’s not the reason anyone loves a piece of art. It’s a secret whisper from an alleyway. Psst, you. Hey kid. Yes you. An individual heart-shock. Your dream, Welty’s dream, Vermeer’s dream. You see one painting, I see another, the art book put it in another remove still, the lady buying the greeting card at the museum gift shop sees something else entire, and that’s not even to mention the people separated from us by time – four hundred years before us – four hundred years after we’re gone – it’ll never strike anybody the same way and the great majority of people it’ll never strike in any deep way at all but – a really great painting is fluid enough to work its way into the mind and heart through all kinds of different angles, in ways that are unique and very particular. Yours, yours. I was painted for you.”

E é isso. Se você já foi tocado dessa forma em algum momento por um livro, um quadro, um filme, uma canção – vai saber exatamente do que Hobie estava falando. E como já deve ter dado para notar, tal como em um quadro, basta um tempo para você perceber que The Goldfinch não é um livro de um tema só, há muito para se ver ali. E até por isso tenho curiosidade sobre como será a recepção dele aqui no Brasil (chega em setembro pela Companhia das Letras).

Porque se você abre o Goodreads, por exemplo, percebe que lá fora as opiniões parecem meio divididas entre quem ama e quem odeia o livro. Eu esperava algo mais equilibrado, mas então lembrei de um texto do Guardian, comentando como prêmios literários faziam os livros ficarem menos populares. A ideia básica do artigo é os prêmios atraem um grupo grande de pessoas (lembra do que falei no começo do post?) e que desse grupo, algumas pessoas assumem que o livro tem que ser bom porque ganhou um prêmio, mas esquecem que o que é bom em um livro varia muito de leitor para leitor.

Veja bem, não tem nada de “Se você não gosta de um livro como The Goldfinch você é burro e tem mau gosto”, como pode parecer. É só que você pode atribuir um valor positivo para coisas diferentes, ou ter esperado algo diferente. Sobre isso, a parte do roubo obviamente terá repercussão. Tem suspense, tem crime, tem sangue, uou! Mas não como se imagina. Há muito acontecendo, bastante coisa mais concentrada na culpa de Theo do que no roubo em si. Mesmo assim, o engraçado é que em várias passagens eu lembrava do narrador de O coração denunciador do Poe. Se isso não pesa positivamente sobre a tensão que Tartt é capaz de construir em sua obra, eu não sei bem mais o que pode pesar.

Últimas aleatórias para encerrar:

  • A capa foi muito elogiada e é realmente muito bem sacada e bonita. Torço de verdade que a Companhia traga o livro para cá com a mesma capa.
  • O Pintassilgo?
  • Momentos mais engraçados definitivamente sempre envolvem o Boris.
  • A passagem com a morte da mãe foi mais devastadora do que aquela cena do Christian Balezinho sendo separado da mãe em O Império do Sol.
  • Em dado momento finalmente saquei a piada do Better Book Titles. Não, eu não sou tão lerda assim, foi antes do Boris começar a chamar o Theo de Potter.
  • Você vai sentir todo tipo de coisa pelo Theo, inclusive raiva. Se prepare.
  • E a mulherada continua dominando meu coraçãozinho leitor em 2014…

4 comentários em “The Goldfinch (Donna Tartt)”

  1. Own, que bacana o post… Nem me liguei muito pro lance do spoiler dessa vez pq saquei que o livro não vai perder por causa disso; e tbm porque de qualquer maneira não li o livro então não deu pra ter ideia exatamente sobre as intenções e ações de cada personagem…

    gostei bastante da citação grande, pq às vezes me pego pensando a mesma coisa… Não importa quão maravilhosa uma obra é dita ser, se não te toca, se vc não consegue captar os pequenos detalhes aqui e ali que dão seu tom, não vai servir pra vc… Mas, quando ocorre o contrário…!

    1. é como eu sempre digo, quando o livro é bom o fator “spoiler” não é tão importante assim. tem livros que se sustentam só na surpresa de algum ponto do enredo. claro, é legal se surpreender, mas livros como the goldfinch vão tão, tão além disso.

      sobre a citação grande, na real eu queria ter colocado toda a conversa do hobie com o theo, essa passagem inteira é linda demais <3

  2. Apenas esperando a tradução <3

    Essa capa é lindona mesmo (mas não sei nada sobre como ela vai ser aqui huhuhu)

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