Então, aquilo que eu lembrava de ter lido em toda resenha e que eu conto aqui para você caso ainda não tenha visto nada sobre o livro por aí (o que acho difícil, já que ele foi lançado em fevereiro do ano passado, mas nunca se sabe, né): Miranda July é roteirista, e estava vivendo um momento de bloqueio criativo quando um dia no meio da já rotineira procrastinação, tem a ideia de entrevistar pessoas que publicam anúncios no PennySaver. Quer conhecê-las, capturar um tanto de suas histórias e transformar isso em um projeto paralelo que justifique seu “não-escrever”, digamos assim.
Veja bem, era sobre isso que eu achava que seria o livro. E para mim já estava de bom tamanho. O texto é escrito de tal forma que as aloprações de Miranda sobre a própria vida (e sobre o roteiro que estava escrevendo) vão se mesclando com as descrições dos encontros com aqueles anunciantes. Eu sei que parece óbvio dizer isso de uma narradora de um livro de não-ficção, mas o fato é que você automaticamente simpatiza com a voz da autora porque ela é alguém que, hum, existe. Ok, é bem óbvio mesmo, deixa eu tentar explicar: alguns pensamentos dela poderiam ser seus, como manias ou medos.
No meu mundo paranoico, todo lojista acha que estou roubando, todo homem acha que sou prostituta ou lésbica, toda mulher acha que sou lésbica ou arrogante, e toda criança ou animal vê meu verdadeiro eu, e ele é mau.
Não é um discurso artificial, é quase como uma amiga descrevendo mais um dia de trabalho. E aí você já está fisgado por isso, mas então percebe que é muito legal a forma como ela registra as pequenas mudança que aqueles encontros com os anunciantes causam nela – ela nunca termina a entrevista como a mesma pessoa que começou. As mudanças em alguns casos são bastante sutis, como o fato de perceber que agora quando passar por determinada vizinhança lembrará do vendedor. Outras, parece cutucar bem forte alguns pontos que ela tentou empurrar para baixo do tapete por muito tempo (como a vontade ou não de ter filhos, o medo de envelhecer, etc.).
O que me agradou tanto nisso é que no final das contas as entrevistas de Miranda retratam muito bem nossos encontros por aí. Aquela pessoa aleatória com quem você troca poucas palavras pode de alguma forma te fazer questionar algo sobre sua vida, de tal forma que mais além possa causar grandes mudanças. E o encontro em si pode ser tão banal que você nunca o associará com algum agente de um grande momento da sua vida, mas a ideia persiste: nenhuma pessoa passa sem deixar alguma marca (ela fala sobre isso de uma forma muito bonita mais adiante, já chego lá).
Mas antes que isso faça você pensar que é uma forma de autoajuda, uma conversa ximbalalaiê aleatória, não, calma. Não é isso. Até porque Miranda faz um esforço tremendo para, como ela mesma diz, evitar substituir as pessoas pela sua própria versão ficcional delas. E parte desse esforço é não retratar a si mesma como uma pessoa sem preconceitos e perfeita, que capta todos os encontros com lentes cor-de-rosa. Você percebe isso nos detalhes, como quando de forma ácida ela comenta “Olhei para Pam e me perguntei se ela não seria meio que uma acumuladora“, ou ainda “no meu léxico de sinais e símbolos, fotos obsessivamente organizadas de prisões, bebês e belas garotas são um indício de que algo grave está acontecendo“. Tem também uma passagem onde ela não tem receio de descrever o medo que sentiu ao encontrar um dos anunciantes.
Enfim, nem ela e nem aquelas pessoas entrevistadas por ela são perfeitas, por outro lado, são todas reais. E o mais importante: ela consegue emprestar coesão para o que poderia ser um monte de histórias picotadas. Não sei se pela moldura “Miranda buscando uma forma de fugir do bloqueio”, mas o fato é que você consegue ler aquelas entrevistas não como unidades separadas, mas como um todo.
E nesse ritmo, é na última entrevista que veio minha surpresa. Insisto: eu já estava adorando O escolhido foi você só pelo que tinha lido até ali. Grifei trechos e trechos, queria que Miranda fosse minha melhor amiga e gostei de cada pessoa-personagem que conhecera através das palavras dela. Mas então chega Joe, com seus cinquenta cartões de natal artesanais.
Eu não sei se você já teve a sorte de encontrar uma pessoa boa como Joe em sua vida, mas a verdade é que quando Miranda o descreve como “um anjo obsessivo-compulsivo, trabalhando furiosamente do lado do bem” há muito você já está completamente encantado pelo sujeito. Ela nem precisava contar isso, entende? E é notavelmente aquele que mais toca Miranda, tanto é que o projeto que deveria correr paralelamente à escrita do roteiro, de repente vira parte do roteiro. Ela convida Joe para atuar em seu filme, muda muito do que já tinha escrito até então pelo que Joe a fizera pensar. Há um trecho lindo que reflete bem a força desse encontro, onde ela diz:
Pensei nos seus sessenta e dois anos de cartões ternos e obscenos, e alguma coisa se desenrolou dentro de mim. Talvez eu tivesse calculado mal o que restava da minha vida. Talvez não fosse troco miúdo. Ou quem sabe a coisa toda fosse troco miúdo do começo ao fim – muitos, muitos pequenos momentos, cada feriado, cada Dia dos Namorados, cada ano insuportavelmente repetitivo e ainda assim de alguma maneira sempre novo. A gente nunca pode comprar alguma coisa com ele, nunca pode contar com ele para algo mais valioso ou mais completo. Eram só aqueles dias, mantidos juntos apenas pela memória frágil de uma pessoa – ou, se tivermos sorte, de duas. E por causa disso, dessa falta de significado ou de valor inerente, era admirável. Como a mais intrincada e radical obra de arte, o tipo de arte que eu estava sempre tentando fazer. Aquilo se atrevia a não significar nada e com isso exigia tudo da gente.
E acho que minha surpresa pelo que o livro virou é que eu esperava histórias de indivíduos, mas talvez eu não esperava que de certa forma elas também me tocassem. Fiquei extremamente comovida com a porção final não só por Joe ser como é, mas por Miranda conseguir descrever tão bem uma agonia que só quem viveu até certa idade consegue reconhecer sem um traço de ironia. Não é como se quando você fosse mais novo não tivesse noção de que um dia ficaria velho. É só que em determinado momento, seus planos viram dúvidas. Aquele “Eu vou me casar e ter filhos” vira um “Vou me casar e ter filhos?” ou “Eu vou publicar um livro que será um sucesso” se transforma em “Eu vou escrever um livro?”. E então você que de certa forma estava procrastinando começa a ter pressa, muita pressa. Quer que as coisas comecem logo a acontecer, com medo de que elas nunca aconteçam, de que exista uma janela de tempo específica em que aquilo ocorrerá. Enfim, não contem comigo para descrever isso em palavras, a Miranda se sai muito melhor e é por isso que o livro me conquistou de vez, no estilo: ok, temos um sério candidato a top5 de leituras do ano mesmo que seja ainda apenas o terceiro mês de 2014.
Só que aí tem também aquilo que eu tinha comentado anteriormente sobre como as pessoas deixam marcas em nossas vidas. Como disse, Miranda consegue descrever muito bem nossa relação com as pessoas, de como elas entram nas histórias de nossas vidas. Já lá para o final, ela diz:
Quase doeu me lembrar de que Joe e Carolyn eram parte do mundo, cercados por um número infinito de histórias simultâneas. Imaginei que era uma das razões pelas quais as pessoas se casam, para fazer uma ficção que pudesse ser contada. Não eram só os filmes que não conseguiam absorver um elenco de personagens; nós também. Precisávamos peneirar a vida para saber onde colocar nosso carinho e atenção, e aquilo era uma coisa boa e doce. Mas, em conjunto ou isolados, estávamos ainda incrustados em um caleidoscópio, impiedosamente variado e contínuo, até o fim do fim.
Somos isso, um cristalzinho num caleidoscópio, e nossas vidas se embaralham formando imagens e histórias. E mesmo os relatos de Miranda July sobre essas pessoas tão distantes, de realidades tão diferentes, fazem parte dessa imagem.
(Eu não sei se mais alguém como eu desconhecia completamente a carreira de Miranda July antes do livro, mas vou deixar anotado aqui de qualquer forma: O Futuro saiu em 2011.)