O filme é baseado em um relato real de Solomon Northup (interpretado por Chiwetel Ejiofor), nascido livre e que vivia bem com mulher e filhos em Nova York, até que em uma noite foi sequestrado e vendido como escravo. Não há muita informação sobre o passado de Northup, mas a noção que se tem é que vive de sua música e é respeitado em sua região. Mas, após o sequestro, começa o período de sofrimento da personagem. Eu sei que parece ser pior se pensarmos que ele ocupava uma posição de relativo prestígio dentro da sociedade, mas calma, não se apresse. Apesar de um caso atípico (se considerarmos que a maior parte dos escravos era de pessoas que só tiveram a oportunidade de se dizer livres enquanto estavam em sua terra natal), a história de Northup revela um processo vivido por todos os escravos. É embarcar nesse pesadelo em que nada que você fale vale como verdade, a entrada em uma realidade distorcida em que você é pouco a pouco despido de de sua identidade e transformado em coisa.
As cenas que descrevem esse processo repetem de certa forma um elemento bem comum aos filmes de horror. Northup desorientado, tenta dizer que houve um engano, que ele é um homem livre – e então ele apanha até que compreende que só sobreviverá se aceitar essa realidade imposta: ele não é o músico Solomon, ele é o escravo Platt. Repare na expressão de Ejiofor cada vez que ele responde para alguém que seu nome é Platt, como há uma infinidade de sentimentos no olhar: a raiva, o medo, a vontade de sobreviver. Aliás, eu estava tão convencida com a atuação do Matthew McConaughey em Clube de Compras Dallas que sequer imaginava a possibilidade de ver uma outra atuação tão boa, tão forte, então foi uma verdadeira surpresa para mim. Acho que a força da interpretação de Ejiofor vem do que ele consegue dizer sem qualquer palavra. Porque Northup (ou melhor, a esta altura, Platt) não tem voz, em raríssimas vezes ele se arrisca a dizer o que pensa porque teme por sua vida, então a personagem poderia ser apenas alguém aceitando passivamente o horror que lhe é imposto, mas com expressões e tom de voz Ejiofor entrega um Platt que está apenas tentando ganhar tempo, que ainda não desistiu.
E então temos um Platt sendo negociado como se fosse, sei lá, um vaso ou uma mesa, e tratado como tal até por patrões que de alguma forma mostram ter algum tipo de “humanidade”, como é o caso da personagem interpretada por Cumberbatch – que enquanto reza com “seus” escravos ainda assim parece irritado com o choro da mulher que foi separada dos filhos. Sabe, como quem trata muito bem um cachorrinho mas assim que ele começa a dar problemas cogita abandoná-lo ou sacrificá-lo. O estranho é isso, embora muitos casos até poderiam ser caracterizados apenas como maldade (como os homens que primeiro vendem Northup sabendo que ele era livre, ou mesmo o sujeito que estraga um de seus planos de fuga), a figura dos patrões parece tender mais para uma noção absurdamente equivocada do que pessoas como Northup representam ali. A fala de Epps com Bass (Brad Pitt) parece representar bem isso:
Bass: The law says you have the right to hold a nigger, but begging the law’s pardon… it lies. Is everything right because the law allows it? Suppose they’d pass a law taking away your liberty and making you a slave?
Edwin Epps: Ha!
Bass: Suppose!
Edwin Epps: That ain’t a supposable case.
Bass: Because the law states that your liberties are undeniable? Because society deems it so? Laws change. Social systems crumble. Universal truths are constant. It is a fact, it is a plain fact that what is true and right is true and right for all. White and black alike.
Deixando claro, não quero justificar o injustificável. Mas o que me parece é que Epps só trata Patt e os demais daquele jeito porque ele realmente acredita nisso, que uma lei lhe confere o direito de tratá-los como mercadoria, propriedade. O horrível desse pensamento é que ele não pertencia apenas àquela época, mas de muito antes: há registros de escravos nos Estados Unidos já de 1620. No momento em que acontece a história de Northup, já seguiam quase 200 anos desse sistema, “cristalizado” e portanto visto por pessoas mais ignorantes como Epps como algo verdadeiro e certo. E então você pensa que “ah, ok, é um filme sobre a primeira metade do século XIX, estamos mais evoluídos”, mas colocando a coisa em termos de datas, não tem nem 50 anos do assassinato de Martin Luther King. Ruby Bridges é atualmente uma mulher de 59 anos. Caramba, neste ano aconteceu na Itália a história do pôster de divulgação de 12 anos de escravidão dando mais espaço para os personagens brancos. O pensamento pode ter mudado no sentido de não serem mais visto como posse, mas para muitas pessoas ainda existe a noção de “coisa”, de algo que não está contido no grupo “ser humano”.
É por isso que apesar de um filme como 12 anos de escravidão retratar um período histórico que imaginamos distante, ainda assim é tão atual. E é um mérito do diretor Steve McQueen não ter “adocicado” a história, mostrando de modo cru (e bastante gráfico), o que pode acontecer quando adotamos como “verdade” a distinção entre pessoas por conta de seu tom de pele. Uma pena que quem deveria entender a mensagem provavelmente continuará pensando tal como Epps.
Só repetindo o que foi dito antes, o filme é baseado no relato real de Northup, publicado um ano após ele ter reconquistado a liberdade. Está saindo por aqui pela Companhia das Letras (se eu não me engano o lançamento coincidirá com o do filme), mas para quem lê em inglês, tem aqui um link para o livro online.