Eu não sei bem como foi que criei essa imagem, mas a impressão que tinha é que Lawanda, a faxineira do hospital, seria uma espécie de mistura de Amélie Poulain com Macabéa, e que o livro seria todo fofo, olha aquela borboleta na capa que não me deixa mentir. Bom, eis o choque de perceber que Lawanda não tem nada de fofa ou apática. Ela é tosquíssima e justamente por causa disso muito engraçada. Aliás, o tom do romance é esse: cômico. Um humor ácido e algumas vezes beirando ao nonsense (a começar pelo primeiro capítulo, com um julgamento da autora), do jeitinho que eu gosto.
Ok, volta a fita para quem ainda não leu: Lawanda é responsável pela limpeza de um hospital, ocupando uma vaga da cota para deficientes. Não fica exatamente clara qual é a condição dela, embora considerando alguns elementos da história, dá para pensar que é algum tipo de distúrbio mental que a obriga a tomar remédios. “Essa Lawanda é límitrofe, disfarçada de maluca, ou o quê?“, perguntam no julgamento da autora. A realidade é que não importa. Lawanda é uma figura sem freio, ou pelo menos com um compasso moral meio questionável. Se realmente é necessário fazer comparação com personagem da literatura nacional, eu diria que ela é uma versão viva de Brás Cubas: ao contrário da morte que liberta a personagem de Machado, aqui seria algum tipo de loucura.
Vale dizer que Meu coração de pedra-pomes é narrado por Lawanda, ou, mais precisamente, é a transcrição dos pensamentos de Lawanda mesclado com diálogos. Com as interrupções, devaneios e tudo o que acontece normalmente conosco, quando estamos perdidos em pensamentos. Voltando ao que eu disse sobre a liberdade da personagem, esses pensamentos sem “censura”, ou ainda, sem edição, geram momentos em que na realidade a narradora nos dá um belo tapa de luva de pelica, tirando sarro do que nós levamos à sério. Há ainda uma série de chistes, que acabam contribuindo para o efeito de humor que prevalece na obra, como dá para ver no seguinte trecho:
– Limpe o quarto 307.
– Pó de chá, Lucréééééécia.
Gosto de falar um Lucrééééécia assim bem arrastado. Cada vez que a chamo, coloco um “é” a mais. Chateia e não há motivos para uma demissão.
A relação dela com a chefe Lucrécia, aliás, é hilária. Veja bem, é um livro em que mesmo os eventos importantes (um paciente morre nos braços de Lawanda, por exemplo) parecem desimportantes. Sabe, aqueles que você pensa “Mas nada acontece!”. O negócio é que acontece muita coisa, sim. A relação de Lawanda com as demais personagens é o motor da história. Cada figura que aparece ali (Lucrécia, o amante José Júnior, os pacientes, etc) de alguma maneira acaba revelando um pouco mais da protagonista, de como ela vê as coisas e, principalmente, de como é “desconectada” afetivamente de todo mundo. Como quando José Júnior se desmancha em declarações amorosas e segue o diálogo:
“Não entendi nada. Essas fotos de borboletas pintadas significam alguma coisa? Bom, eu te amo. E o amor e importante.” (…)
“Não, José Júnior. Importante é o saneamento básico.”
E aqui vale ressaltar que Lawanda não é de forma alguma burra ou mesmo ingênua. Não digo nem pelo sexo (sobre o qual ela fala sem nenhum embaraço), é de como ela usa e abusa de José Júnior sem remorso, se vira quando está em alguma saia justa que pode lhe custar o emprego. É até por causa disso (e do tom geral sempre cômico) que me surpreendi com o final, bastante melancólico na minha opinião. Não vou entrar em detalhes porque acho que não há necessidade para explicar isso, mas basta dizer que não era o que eu estava esperando, pelo menos do modo como a narrativa foi se desenvolvendo. Naquela altura do campeonato você quer é que Lawanda pegue o frigobar e os besouros que coleciona e sei lá, encontre o amor que saiba falar russo.
Enfim, discordando do julgamento lá do comecinho, não acho que seja um livro desnecessário. Um livro de humor inteligente como esse é mais do que necessário. Uma história simples e cativante, também. Não acho que temos sempre que buscar um sentido oculto em uma obra, às vezes ela é especial justamente por não ter ganas de profundidade ou de ser hermético. E então junta aí a moça Juliana Frank com a Carol Bensimon e a Vanessa Barbara e cá estou eu, empolgadíssima com a mulherada aqui do Brasil. Eu confesso que minha média de autores nacionais sempre foi uma vergonha, mas se continuar desse jeito, logo começa a ficar colado com os gringos.
Em tempo: tem uma entrevista interessante com a autora aqui. Acho que se tivesse lido antes das outras resenhas, jamais teria passado pela experiência shoyu-no-lugar-de-coca pela qual passei.
Gente, será que que minha resenha lá pro Amálgama de alguma forma fez ela parecer fofa? Agora fiquei com medo! ahhaahha
Pq sim, ela não é nada fofa. Ela é bem seca e direta, e louquinha e legal e meio errada mas por isso legal.
E realmente, as mulheres daqui estão mandando muito bem. Já leu a Luisa Geisler (além da Granta)? É outra que merece muito amor. <3
vish, até fui reler a sua, mas não foi de lá que eu tirei a impressão, não. ô.O
eu estou com o quiçá da geisler para ler no kindle, mas tenho me enrolado um tico – sabe quando você começa, lê umas páginas, aí começa outro, aí volta, aí começa outro…? então. =S
Hahha ufa!
Entendo isso, mas prossiga. Achei Quiçá tão lindão <3