Faíscas, se eu não me engano, é exatamente o primeiro capítulo de Todos Nós Adorávamos Caubóis, ou seja, a introdução para a história de Cora e Julia. Na época ficava claro um desentendimento no passado, provavelmente relacionado à viagem de uma delas, bem como o fato de que aquela viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul surgia para Cora (narradora e protagonista) como uma oportunidade de reatar antigos laços. E no final das contas o romance durante os outros capítulos se desenvolve exatamente assim: a viagem de Cora e Julia, os estranhamentos sobre os tempos em que passaram distantes, as explosões de frases não-ditas presas na garganta, a intimidade compartilhada – tudo isso com um tempero de bons road movies norte-americanos.
Algo comum em qualquer resenha que você lerá por aí é a precisão com a qual Bensimon descreve o espaço, o que de fato é algo digno de nota. Como comentei no twitter enquanto ainda lia o livro, é aquele tipo de descrição que te transporta para o lugar e então depois de um tempo você fecha os olhos e lembra de trechos da história como quem lembra de cenas de filmes. E eu sei que considerando a viagem das duas personagens o espaço principal aqui é o interior do Rio Grande do Sul, mas as descrições de Paris que aparecem nos flashbacks da narradora também são bastante precisas, daquelas que atiçam a memória de lugares em que você nem esteve. Mas por descrição não pense em enfadonhas linhas dedicadas às cores de um prédio e formatos de montanhas: há uma escolha na inserção dos elementos descritivos que emprestam uma familiaridade imediata ao local, algo que te permite reconhecê-lo sem ter estado lá, cito como exemplo um trecho em que a personagem caminha por uma avenida movimentada de Porto Alegre:
Depois levantei e me pus a caminhar na avenida movimentada, completamente alheia à pressa, às consultas médicas, aos colchões ergonômicos, criados-mudos, papel-carbono, camisolas, a quem não tinha onde dormir ou estava viciado em crack, e à loja de móveis rústicos fazendo queima de estoque.
É Porto Alegre, mas conseguia ver ali também a Marechal Deodoro de Curitiba. Não é engraçado isso, quando um lugar tão precisamente marcado pode virar qualquer lugar? É o tipo de momento de uma leitura que faz com que eu lembre de Esquina, do Mario de Andrade: Mas sempre o meu pensamento indeciso se embaralha, e não distingo bem se é esquina de rua, esquina de mundo. Eu acho que parte da força dessas descrições está justamente nisso, em evocar objetos e situações carregados de lembranças pessoais do leitor, que complementam o cenário descrito.
Mas é evidente que não é só nisso que Todos Nós Adorávamos Caubóis encanta. Gosto como Bensimon não parte para o óbvio na hora de contar algo, como quando Cora revela que sua família nunca foi muito religiosa. Ela poderia ter usado exatamente esta expressão “nunca foi muito religiosa”, mas aí prefere um “O livro mais grosso na biblioteca da minha casa sempre fora Dom Quixote“. E essas escolhas mais sutis serão extremamente importantes para quando a narradora descreve seus sentimentos. É tão forte, que você consegue enxergar em Cora uma figura próxima de você, mesmo que você não enfrente situação semelhante a dela. Quando fala de sua atração por mulheres, por exemplo, é um discurso tão bonito cuja base não depende da orientação sexual: é aquela necessidade de ser amado (just like everybody else does). Então você não precisa ser bissexual ou homossexual para entender a angústia de Cora quando ela diz:
Pelo amor de Deus, eu queria me apaixonar na rua e poder contar com um pingo de chance. Não ter medo de me envolver com alguém que, no dia seguinte, pudesse acordar arrependido. Mas acabei sendo o lapso de muitas pessoas.
É, de novo, um certo resgate da memória afetiva do leitor, complementando o que é dito, como se a autora nos oferecesse uma tela incompleta para nós terminarmos de pintar. O jogo entre leitor e narrador também funciona quando pensamos nos pequenos detalhes que marcam características das personagens. Não sei se por eu ter idade próxima a de Cora, mas fui pescando cada referência de quem foi adolescente nos anos 90 com um gosto especial, especialmente quando o assunto era música. Confesso que cheguei a rir sozinha quando Cora e Julia estão falando sobre Jewel, porque na hora que Julia revela envergonhada que gostava da cantora, eu imediatamente pensei “Po, mas You were meant for me é legal”, para logo depois ler Cora falando que todo mundo só gostava dessa música (o que acho que procede, porque não lembro de ter ouvido outra música da Jewel). Aconteceu comigo algo parecido com o que Cora sente quando pensa na idade namorada mais recente do pai:
Quer dizer que nós havíamos assistido aos mesmos desenhos animados antes de ir para o colégio, comido os mesmos biscoitos que saíram de linha, nós cantamos o mesmo jingle irritante de um chiclete de banana, e ficamos surpresas, embora sem entender muito bem, quando Ayrton Senna não conseguiu fazer uma curva.
É como se ela falasse o tempo todo que todos nós somos feitos de memórias.
Acho que se tem algo que eu não gostei (ou pelo menos não gostei muito) sobre o livro é o capítulo final, em Paris. Aqui pode vir um spoiler, embora eu ache que não seja nada que vá estragar sua experiência, mas enfim, nunca é demais avisar, melhor para o próximo parágrafo, etc. Enfim, a narradora primeiro dá a entender que, como está vivendo com o francês, aparentemente ela abandonou qualquer esperança de reatar com Julia depois da despedida na rodoviária. Aos poucos fica claro que não, eles são só amigos e bem, Julia está vindo visitá-la na cidade. Eu achei toda a conversa com Jean-Marc e mesmo o reencontro das duas meio desnecessário considerando o todo. Aquele flashback do final que complementa a noite em que se conheceram ficou tão bonito e ficaria perfeito para o momento da despedida da rodoviária, porque deixaria o destino das duas em aberto. Estraga a história? De maneira alguma. Só causa um leve incômodo, um estranhamento.
Então assim, eu adorei essa viagem com Cora e Julia. Lembrei de quando combinava com uma amiga do colégio que um dia viajaríamos bem loucas por aí tipo as gurias do clipe Crazy do Aerosmith (que, tenho certeza, foi uma das inúmeras influências da autora), mas nenhuma das duas sabia dirigir ou tinha carro, e aí o plano morria quando pensávamos na falta de glamour de uma viagem de busão. Foi uma leitura gostosa, ao mesmo tempo tocante e, o principal, deixou aquela vontade de voltar, como acontece quando nos apaixonamos por novos lugares.