A premissa básica do romance é que quando uma pessoa morre, ela não vai para um céu ou inferno. Ela vai para uma cidade, onde ficará com outras pessoas mortas até o momento em que não exista mais ninguém vivo que lembre dela. Há alguns trocadilhos no texto que deixam implícita a ideia de “alma”, mas os habitantes dessa cidade comem, dormem, ouvem música, se apaixonam, enfim, “vivem” como fariam do lado de cá. E aí você pega o papelzinho onde anotou o número de gente de quem você lembra e pensa: nossa, então essa cidade deve estar cheia, e seu raciocínio está correto, embora a cidade de adapte às novas “almas” que vão chegando, e vai crescendo cada vez mais, além de existir um certo equilíbrio: para um determinado número de gente que chega, há outro que vai embora.
Tudo indo muito bem até o momento em que vários habitantes começam a desaparecer, quebrando o tal do equilíbrio. Muita gente. E então você leitor pensa que o livro será sobre o mistério envolvendo o sumiço dos habitantes da cidade dos mortos, mas bem, não é por aí. Capítulo novo, somos apresentados à Laura Byrd, funcionária da Coca-Cola que com dois pesquisadores vai até a Antártida sondar a possibilidade de explorar o gelo da região para fabricar refrigerante. Inicialmente demorei um pouco para entender qual a função de Laura na história, até que chega um novo capítulo da cidade (o livro todo é estruturado assim: cidade/Laura/cidade/Laura, etc) e ficamos sabendo de um modo até engraçado que há um vírus apelidado de “The Blinks” que se espalhou no mundo todo e está acabando com a população da Terra. Pronto, acabou o mistério sobre o que estava acontecendo na cidade.
Eu fiz todo esse resumo para explicar o que acabou me desagradando em The Brief History of the Dead. A sacada de Brockmeier é ótima, mas acaba pecando no desenvolvimento, já que o autor vai entregando meio que já no início todas as respostas para os leitores e cabe para nós apenas ficar “observando” a luta de Laura (a última pessoa viva no mundo) para sobreviver, e o dia-a-dia e pirações de quem está na cidade unicamente por causa de Laura. Até o elo com a garota eles encontram mais rapidamente do que deveriam. Enfim, passei um bom tempo pensando em como ele poderia ser mais curto, aí quando fui pesquisar sobre a obra antes de escrever o post descubro que ela originalmente era um conto, publicado em 2003 na New Yorker. AHHHHHHHhhhh, tá.
Poisé. Como conto, ficaria bem legal porque manteria a ideia de uma divisão entre vivos, mortos que são lembrados e mortos que foram esquecidos. Há de fato beleza no modo como Brockmeier descreve muitas situações na cidade, e você sente uma agonia absurda por Laura solitária naquele frio do cão. Mas acabou sendo um daqueles casos de manteiga esticada o máximo possível no pão mesmo. Porque a ideia do autor de manter o ritmo dos capítulos saltando de Laura para a cidade não teria como se sustentar se em três capítulos eles descobrem que: a) quem é lembrado permanece naquele local, b) há uma epidemia acabando com todo mundo na Terra e c) as pessoas que estão na cidade só estão lá por causa de Laura. E então, como é que o autor resolve isso? Criando capítulos mostrando o ponto de vista de variadas personagens na cidade. O executivo da Coca-Cola, o jornalista, a garota que se apaixona pelo jornalista, um homem cego, etc. O problema é que essas personagens ficam meio sem dimensão, mal desenvolvidos. Pior: não despertam o interesse do leitor. Cada uma daquelas histórias funcionaria muito bem como um conto a parte, mas como parte de um todo fica só cansativo.
O que obviamente não acontece com Laura, já que aí ela tem bem mais espaço para ser desenvolvida. E a história dela tentando sobreviver é ótima, não só pela já mencionada agonia que dá, mas porque há uma relação entre a ideia central do livro (permanecer em um local enquanto ainda lembram de você) com as digressões de Laura. Enquanto tenta imaginar um modo como escapar da situação em que se encontra, ela vai lembrando de coisas que sua mãe disse, de noites de despedida do homem que amava, de pessoas de quem sequer sabia o nome mas que de alguma forma marcaram sua vida. E eu não sou muito fã de buscar “mensagens” em um livro, mas se há algo que fica nítido em The Brief History of the Dead é isso: como as pessoas estão ligadas umas às outras em algumas vezes sem nem saber reconhecer qual é o laço que as une. Muitos dos habitantes da cidade sequer sabiam quem era Laura Byrd, outros lembravam vagamente da moça, e mesmo assim, todos estavam lá por causa dela.
Gostei também de como o futuro nos é apresentado de forma sutil, sem aquela forçação de barra bastante comum em livros do tipo. Há situações alarmantes (não existem mais mamíferos grandes como elefantes ou baleias), outras que quase passam batido (um alarme de aviso anti-terrorista que toca tão constantemente que as pessoas nem ligam mais para ele) e mais umas até previsíveis (a própria ideia de um vírus de laboratório acabando com todos os humanos), mas tudo se encaixa bem, como parte do enredo – e não como se o enredo fosse montado ao redor de pirações sobre o futuro como parece acontecer em alguns livros do tipo.
Então o saldo final é de que é um livro que poderia ser ótimo, mas ficou só ali na média. Complicado isso, não? De quando você não gostou nem odiou um livro o suficiente para falar dele, ou ainda, para lembrar dele alguns meses depois. Se existisse uma “cidade” para livros, eu acho que The Brief History of the Dead passaria pouco tempo lá.