A primeira vez que ouvi falar de House of Leaves foi em uma dessas listas que pipocam por aí sobre livros “intraduzíveis”. Fiquei curiosíssima após ver algumas imagens mostrando a formatação completamente louca das páginas, imaginando como é que aquilo se encaixaria na história, que em teoria é até simples. Temos três linhas para seguir: o artigo de Zampanò sobre um documentário, as notas que Johnny Truant incluiu neste artigo após a leitura e o material coletado por Will Navidson para criar o documentário do qual Zampanò fala. Cada linha é apresentada com uma fonte diferente, para ajudar o leitor a reconhecer a “voz” predominante. O documentário em questão é conhecido como The Navidson Record, e desde o início Truant revela nas notas de rodapé que não encontrou qualquer informação que comprovasse a existência do vídeo, porém o estudo de Zampanò vem recheado de referências a livros e pessoas tratando o documentário como real. Nós, como leitores, sabemos que é ficção mesmo que nomes como Miramax e Weinstein apareçam por ali, mas não deixa de ser interessante até como um recorte do nosso tempo a inclusão de nomes reais em um romance. Não tem como não achar graça, por exemplo, do trecho em que pessoas são entrevistadas e falam do Navidson Record. Quais pessoas? Ah, só “desconhecidos” como Anne Rice, Stephen King, Harold Bloom, Hunter S. Thompson e Stanley Kubrick. De novo: é evidente que são depoimentos “falsos”, mas ainda assim, cria um efeito interessante, puxando a ficção para a realidade.
E eu falei de achar graça e está aí: peguei House of Leaves achando que era um livro de terror, mas ele é mais do que isso. Ele tem de tudo um pouco ali, dá espaço até para romance (aliás, Danielewski diz que House of Leaves é uma história de amor). Inicialmente fiquei um pouco frustrada porque achava que o ritmo artigo de Zampanò/notas de Truant às vezes botava uma baldada de água fria num momento em que a narrativa havia atingido um ótimo grau de tensão. Os primeiros trechos de Truant eram assustadores, há inclusive uma passagem em que ele propõe um exercício ao leitor para tentar mostrar o terror que ele estava vivendo. Eu li este trecho durante a madrugada, na cama. Olhava para o corredor e ficava só pensando “Por favor, Arthur, não me chame hoje à noite que eu não vou conseguir levantar daqui”. Assim. Depois inverte, e o horror pareceu bem mais forte na descrição de Zampanò sobre o documentário.
Aqui eu confesso que passei o livro todo pensando “Mas caramba, como é que ele fala com tanta precisão deste vídeo se ele é cego?!”. Porque olha, é precisão mesmo. Zampanò descreve as cenas de tal forma que é como se você estivesse assistindo ao documentário com ele. Nada passa batido: expressões faciais, detalhes sobre iluminação ou foco. E para quem gosta de filmes de horror, não dá para não pensar em quantos filmes recentes apresentam elementos do Navidson Record, a começar pela mania de mockumentaries de horror no estilo A Bruxa de Blair ou mesmo, mais recentemente, Grave Encounters. Há um momento em que uma personagem está só no labirinto escuro, e ela aponta a câmera para si e naquele exato momento lembrei daquela imagem emblemática da garota chorando de pavor em a Bruxa de Blair, e a ideia de vagar em um labirinto onde espaço e tempo não seguem as mesmas regras da “realidade” é uma premissa básica de Grave Encounters. Considerando isso, é possível dizer que embora falem que House of Leaves é “infilmável”, pelo menos The Navidson Record poderia muito bem ser filmado como um mockumentary de terror: Will Navidson (“Navy”) muda para o interior com a família, para uma casa que simboliza a segunda tentativa do casal. Tudo parece bastante normal, até que um dia voltando de viagem a família descobre que há uma porta na parede entre o quarto das crianças e o deles – porta que não existia até então. Depois, uma porta na sala revela uma espécie de labirinto oculto e sem fim, que logo Navidson decide explorar com a ajuda de um grupo.
Dividido em capítulos, o documentário mostra principalmente a Exploração A (só com Navidson, descobrindo a peculiaridade do lugar), depois as demais explorações em grupo. Até chegarmos na exploração #3, a narrativa de Zamapanò segue o mesmo padrão do começo, aquele tom meio acadêmico cheio de citações e notas de rodapé. É no meio da exploração #4 que a experimentação de Danielewski realmente começa: o capítulo VIII (SOS) é um ótimo exemplo de como forma se funde com o texto na hora de construir um significado. Além da representação em código morse de SOS que divide trechos do capítulo (• • • – – – • • • ), os parágrafos também representam o código, sendo distribuídos da seguinte maneira: três curtos, três longos, três curtos. A saber, a descrição das batidas na parede são arrepiantes – é esse o momento em que o tom de horror começa a predominar na história de Navidson.
Não preciso dizer muito para ficar claro que na exploração #4 as coisas começam a dar errado (bem errado). Os parágrafos curtos exigindo do leitor que virem as páginas com certa velocidade (e constância) para mim fazem inicialmente uma relação com os frames dos filmes. Se considerar que o pouco que Danielewski fala sobre o azul para a palavra “House” no livro é que lembra o azul do chroma-key, não me parece um palpite tão solto. Até porque em uma das minhas passagens favoritas do livro, para descrever uma sequência onde uma personagem leva um tiro temos uma sequência de páginas que segue assim:
A life
time
finished between
the space of
two frames.
Sendo que cada frase das citadas acima aparece em uma página diferente, e nesse “two frames” há um espaço maior entre uma palavra e outra. Lendo cada uma separadamente temos uma imagem estática (e quase nenhum sentido). Lendo-as seguidamente (rapidamente), temos o movimento, a breve “cena”, onde a vida da personagem se vai. E o legal é isso: sempre que Danielewski alopra com a forma, há uma razão por trás disso, não é só para ser “hermético” ou qualquer coisa do gênero. Um outro momento além desse descrito e do qual gostei bastante é quando Navidson está fazendo sua última exploração do lugar e seguindo uma tendência contrária do que apresentara até então, os corredores do labirinto começam a ficar menores, mais apertados. Como isso é representado? Aos poucos o autor vai reduzindo o tamanho dos blocos de parágrafos, como um reflexo do ambiente onde está Navidson (clique na imagem para ampliá-las):
Onde de novo, cada bloco aparece em uma página. O efeito é muito legal, quase como se realmente houvesse movimento, ou ainda, acompanhasse o movimento da personagem pelos corredores cada vez mais estreitos. Quando você chega no espaço de duas linhas já está habituado com a ideia, o que torna a passagem descrita ainda mais claustrofóbica. Em outro momento, as palavras imitam a imagem da corda se rompendo, além da visão de quem está no alto com uma ponta, e quem ficou para baixo com outra.
Talvez por conta disso a fama de intraduzível, embora o livro já tenha traduções para o japonês, holandês, francês, italiano, grego e alemão (do que eu lembro de ter visto por aí, deve ter mais). Acho que o maior problema mesmo para a tradução está nos textos dentro do texto, como no caso da carta já mencionada da mãe de Truant. Ela escreve de tal maneira que se você pegar a primeira letra de cada palavra, você formará novas palavras e aí a carta “escondida” onde ela revela ter sido estuprada. E veja, não é coincidência, como se de repente nas 2000 e tantas palavras deste post você encontrasse uma frase perdida: a carta está lá, do início ao fim. O negócio é que é óbvio que você acaba ficando curioso sobre esse código e tentando aplicá-lo em outros lugares. Mas se você pensar que é um livro com mais de 700 páginas, considere isso uma tarefa para fã muito louco e obcecado – nível no qual eu ainda não cheguei, mas usando o modo cheater (aka: lendo o fórum House of Leaves depois de acabar o livro), descobri que em outra carta da mãe de Truant nesse mesmo código tem lá um “My Dear Zampanò, who did you lose?” UUUHHHHHhhh… Pois é. Isso para não falar da carta em que ela pede que Truant deixe uma marca no canto inferior direito da carta dele para confirmar se ele tinha recebido a correspondência. Volta lá para o começo do capítulo VIII (SOS), o que temos no fim da página? Sim, uma marquinha. A partir daí muitos palpites, e mais uma vez texto replica forma: o leitor perdido num labirinto. A mãe de Truant conhece Zampanò? Qual a relação dos dois? Pois então. É isso que falei sobre acabar o livro e ainda continuar pensando sobre ele.
Na minha leitura, eu vejo muito o labirinto da casa mimetizando o que seria o romance. Explico: da mesma forma que o labirinto mudava conforme o estado de espírito de quem estava dentro dele, livros podem ser lidos de formas diferentes dependendo do estado de espírito de uma pessoa. A relação do azul/chorma-key para a casa também funciona dentro dessa ideia, de como nós acabamos projetando coisas nos textos que lemos (olha, exemplo mais óbvio disso é o que estou fazendo nesse exato momento). Somando a isso a ideia de “a novel” vir escrito em roxo, uma soma de azul (House) e vermelho (os trechos do minotauro), mais o fato de que a capa do livro ser menor (ou seja, como o labirinto da casa de Navidson, ele também se revela ser maior do que é na realidade), e não consigo deixar de pensar em como a ideia de um leitor lendo um livro e de alguém entrando naquele labirinto acaba se relacionando tão bem.
Óbvio, isso não responde as questões levantadas pelo enredo (relação de Pelafina com Zampanò, só para começar), e confesso que algo que adorei fazer depois da leitura foi ver as mil teorias sobre ele no fórum do livro, como o fato de Karen ser filha de Pelafina, ou Zampanò ser pai de Truant ou ainda de todo o livro ser um romance escrito por Pelafina no hospital psiquiátrico (esta é a minha favorita). São muitas teorias, e todas elas têm um ponto em que as coisas não se encaixam muito bem. É como se você estivesse caminhando num labirinto, encontra um corredor longo que parece que vai te levar para o final e descobre que tem um paredão que faz com que você tenha que começar um caminho novo. Sim, é meio frustrante, fica aquela sensação de que eu só raspei a superfície, de que tem muito mais ali e talvez por isso House of Leaves acabou me encantando muito mais pela estrutura do que pelo enredo, já que a parte do Navidson Record eu adorei, mas a do Truant eu achei que ficou um tanto confusa porque é justamente a que é mais “aberta” às teorias.
Mas assim, é indiscutível que House of Leaves é inovador e abriu caminho para livros bem badalados no momento como o projeto do J. J. Abrams (que também brinca com diferentes vozes dentro de um livro, mas do que entendi, no caso ao invés de notas de rodapé são comentários de dois leitores). Eu ainda tinha um pé atrás que parte da fama fosse por ele ser tão maluco que seria ilegível, e aí as pessoas diriam adorar para não pagarem de burras (hehe), mas não é por aí. Assim que você pega um ritmo de leitura, pular do artigo para as notas do Truant começa a ficar até natural, flui bem. E agora depois de ler não sei se realmente concordo com a fama de “intraduzível” e “infilmável”, mas ainda acho que a transição para um e-reader não virá sem algum prejuízo para o leitor. E agora estou aqui com outro livro do autor me encarando, o Only Revolutions. Parece igualmente maluco, mas um tanto mais curto. Vamos ver se leio em breve e comento por aqui.
Putz, que bacana… Depois que vc falou do livro no forum, procure bem superficialmente e só fiquei sabendo um pouco, pelo que vi no google images, da forma doida do livro, não sabia nada do enredo e fiquei mais interessado ainda! Ah, a sua edição é em hardcover? Por aqui so achei na cultura por 158 reais, vou ver se aparece alguma promoçao lá…
na foto parece hardcover, (peguei da internetz hehehe) mas até onde eu sei só tem edição em brochura. reza a lenda que uma delas inclusive foi feita com um tipo específico de cola que era para parte do livro acabar se soltando, mas o meu eu judiei horrores e continua com todas as páginas, então não deve ser essa edição, não.