O livro começa com uma nota dos responsáveis pelo leilão avisando que a introdução ao catálogo seria a reprodução de um cartão postal escrito em 2008 por Harold Morris, o dono dos itens que estão sendo leiloados. No cartão, Morris conta para Lenore que o único relacionamento que ele se arrependia de ter terminado era o que ele tinha com ela. É uma boa sacada de Shapton, porque ela na realidade já está nos entregando que não haverá surpresas: veremos o relacionamento de um casal do começo até o fim. Portanto, o enredo em si é ordinário, mas a forma como ela o desenvolverá que ganha destaque aqui. Primeiro porque a autora conta com o leitor para complementar as lacunas que são deixadas na história, adivinhar o que está acontecendo por conta de simples objetos. Segundo pela ideia que ela acaba desenvolvendo do que é um fim de relacionamento (e falo disso logo mais, calma aí).
Quando fui chegando perto da metade do livro fui fiquei surpresa de como a autora estava conseguindo não só desenvolver a história, mas também prender minha atenção. Alguns itens colocados no leilão surgem não para o desenvolvimento do enredo (de novo: já sabemos que será começo, meio e fim de um relacionamento), mas para conhecermos melhor as personagens. Os ataques de raiva de Lenore, o egoísmo de Harold, os gostos de cada um. E no meio disso, outros objetos vão progressivamente marcando momentos na vida do casal, aquela fase de amor louco que você abandona tudo só pela pessoa, a fase em que os defeitinhos que antes eram até fofinhos passam a ser irritantes, a hora de morar juntos, a hora em que as brigas vão ficando cada vez mais constantes, etc. Dando um exemplo, para mim um dos sinais mais fortes de o namoro estava chegando ao fim foi a troca de livros em um Natal, onde as dedicatórias longas e cheias de piadinhas internas dão lugar para frases secas, aquele euteamo mecânico.
Eu sei que a esta altura você já deve estar pensando “Ei, Anica, mas o Daniel Handler não fez algo parecido com Por isso a gente acabou? Ou ainda, o Orhan Pamuk com O Museu da Inocência?”. Hmmmm… não exatamente. Nos dois casos citados os autores usam um narrador em primeira pessoa que vai descrevendo os fatos que estão relacionados a algum item. “Este grampo de cabelo é daquele dia que fui te encontrar e senta que lá vem história”, digamos assim. Já no livro de Shapton, não há um narrador: só a linguagem fria e descritiva do texto de catálogo, mostrando dimensões de objetos e, em raríssimos casos, revelando o histórico do que é descrito. Poderia ser algo extremamente chato (lembrem daquele narrador n’A Parte dos Crimes de 2666 para entender o que quero dizer), mas acaba funcionando. Aqui um exemplo de uma página para ter uma ideia de como funciona:
Sejamos honestos, a autora dá uma “roubada” nesse esquema, já que vários dos itens do leilão são e-mails impressos e cartões postais, então nós temos um texto além da descrição do catálogo. Pedidos de desculpas, broncas, declarações de amor. A justificativa para tantos cartões postais é que Harold é um fotógrafo que vive viajando, portanto é uma forma que encontraram para se comunicar tão logo começam o namoro. Na realidade, os primeiros cartões nitidamente fazem parte do jogo de sedução, para mais além começarem a virar só um hábito – o que fica claro pelo tom das mensagens.
E aqui entra a questão da participação do leitor, que antecipa alguns eventos (para confirmá-los adiante), e assim vai na realidade “adivinhando” a história do casal. Dois classificados com apartamentos de um quarto circulados representa a separação. Um caso em especial eu gostei bastante, porque é bastante sutil mas funcionou muito bem (e aqui vai dentro do reservadinho do spoiler porque não quero estragar a surpresa de ninguém que eventualmente venha a comprar o livro também):
Deixando para o fim, a questão da ideia do que é o fim de um relacionamento. É engraçado, mas quando li Por isso a gente acabou, eu lembrei da minha caixona de recordações onde guardo lembranças gerais da minha adolescência (tem uma foto dela neste post antigo aqui). Mas lendo Important Artifacts and Personal Property (etc), eu lembrei que existiu uma outra caixa, que eu recebi do meu ex um tempo depois que terminamos. Nela havia uma série de objetos que marcavam nossos cinco anos juntos: papel de presente, caixa de chocolate, inscrição para vestibular, etc. A caixa em questão não existe mais, mas escrevi sobre ela aqui no blog tão logo a recebi do ex. Meu comentário? “A pior parte a respeito de fins de relacionamentos longos é ver que no começo o “eternos apaixonados” era sincero. Eu nem entro na pira do “onde foi que erramos”, já que erro se pensa quando ainda está junto para poder consertar. Mas que dá um aperto no peito ver tanto tempo perdido, isso dá.“. Lembrando disso tudo, pensei em como esses objetos que nada significam para outras pessoas ganham um outro valor pela história compartilhada, pelo que representa para nós. Os valores que aparecem nos itens do leilão (10 dólares, 40 dólares) são só uma brincadeira sobre o valor daquele pedaço de história para Harold e para Lenore.
Impressionante como com tão pouco Shapton entrega algo tão tocante. Para quem ficou curioso, vale um aviso: buy with one click é ótimo para quando você está ansioso sobre um livro, mas eu ainda acho que livros com imagens no kindle são um pouco chatinhos: elas ficam pequenas e não tem como ampliar (eu pelo menos não sei como, hehe). Então neste caso o bom e velho livro de papel deve ser uma experiência mais bacana. Notícia ruim é que só tem sete disponíveis na Amazon neste momento e, bem, até onde sei não chegou a sair no Brasil.
quero ler, depois desta resenha, ótima por sinal, parabéns
pena que não saiu no brasil 😛
Obrigada, Gilberto ;D
Sobre não ter aqui no Brasil, é uma pena mesmo. É um livro tão bacana que merecia ser lido por mais pessoas