Como Shakespeare se tornou Shakespeare (Stephen Greenblatt)

ShakespeareO maior problema das biografias sempre me pareceu ser a falta de criatividade de quem as escreve. O modelo que invariavelmente se adota é de transformar a pessoa em personagem, e aí narrar sua vida como um romance linear, partindo da infância até os últimos dias. É evidente que em alguns casos a fórmula funciona porque a pessoa cuja vida é retratada é interessantíssima1, imagino aqui que deva ser extremamente difícil errar a mão em uma biografia sobre Oscar Wilde ou Voltaire, por exemplo.  Mas no final das contas é isso: o texto pode até ser bom de ler, mas não traz novidades.

Pensava isso pelo menos até ler Como Shakespeare se tornou Shakespeare, de Stephen Greenblatt. O modo como ele escolhe falar sobre a vida daquele que é considerado um dos nomes mais importantes da literatura de língua inglesa é simplesmente genial, indo além da já citada linearidade (sim, começa do “começo”, como qualquer outra biografia) detalhando momentos que foram fundamentais para que as obras de Shakespeare fossem tais como são. O curioso da ideia por trás desse livro, de que Shakespeare era um reflexo do tempo em que vivia, é que enquanto lia lembrava da faculdade, da professora Célia Arns na disciplina sobre Shakespeare dizendo exatamente isso: que Shakespeare só existiu (e consequentemente sua obra) porque ele nasceu naquele exato momento da história. Tivesse surgido hoje em dia, não teríamos o Bardo.

E se ele só poderia existir naquele momento histórico, é evidente que algo extremamente importante seja a quantidade de informações sobre o período que realmente expliquem porque Shakespeare só poderia ter existido ali. E Greenblatt faz isso muito bem, transportando o leitor para a Inglaterra de meados do século XVI e começo do XVII através de descrições ricas e vivas daquele tempo, com anedotas que parecem ter repercutido na obra do dramaturgo mesmo anos depois de terem acontecido. Com esse retrato daquela época, Greenblatt  alerta o leitor de Shakespeare moderno de que obras como Hamlet,Rei Lear e Othello foram escritas em um outro contexto, em uma outra realidade.

Um capítulo que chama particularmente a atenção para a diferença entre a nossa realidade e a de Shakespeare foi o sexto, “A vida nos subúrbios”, descrevendo a Londres que Shakespeare encontrou ao chegar de Stratford-upon-Avon. O fedor da cidade grande, o fato de ao você ver quase que diariamente execuções em praça pública (incluindo cabeças decepadas), ou ainda frequentar o Bear Garden, um lugar onde colocavam um urso para lutar contra um cão – são retratos de uma época que se perdeu, que nossa mentalidade atual mal consegue imaginar que um dia foi um retrato do cotidiano.

Greenblatt usa então pedaços da vida de Shakespeare com trechos de suas peças, mostrando como sua vida ecoou em sua obra. Destaca bastante o fato de que muito da vida do escritor ser um mistério até os dias de hoje, e que em alguns casos poucas fontes sobraram (e não tem receio de dizer quais são ou não confiáveis). Ele mergulha tão fundo nessa pesquisa que traz questões interessantes sobre a educação de Shakespeare, o que o trouxe para Londres, a morte de seu filho Hamnet e, é óbvio, seus últimos anos. E é tanta informação que mesmo aquele que acredita conhecer bastante sobre o dramaturgo acaba ficando de queixo caído, como, por exemplo, com o fato de que este homem:

Shakespeare?

 

Pode simplesmente não ser Shakespeare como muitos acreditam, mas um afilhado e filho bastardo dele chamado William Davenant. O que chama a atenção então para a escolha da capa, que é de uma representação que foge das mais conhecidas do bardo. A imagem que pode não ser de Shakespeare aparece junto com outras no meio do livro, em uma série de ilustrações que mostram um pouco de elementos da vida dele (até o retrato de um par de luvas da época, ilustrando o fato de que o pai de Shakespeare era luveiro). As fotos estão em preto e branco e são impressas no mesmo tipo de papel do livro todo (pólen soft), ao contrário do que normalmente acontece nesse tipo de obra, quando as imagens são coloridas e impressas em papel diferente. Mesmo assim é um mero extra, então cor e papel não chegam a fazer diferença nesse caso.

Acredito que trata-se de um livro que agradará principalmente quem já está familiarizado com os textos de Shakespeare. Digo isso porque para mim os trechos citados por Greenblatt ganhavam proporções diferentes considerando o que eu já tinha lido e o que eu ainda não tinha lido do escritor. É como se toda a leitura da peça fornecesse um panorama maior do que aquele que alguns poucos versos citados por Greenblatt mostram.

Mas mesmo que seja mais voltado para os que já conhecem a obra de Shakespeare, ainda assim acredito que a leitura seja válida para aqueles que se interessem por biografias. Nesse caso, não só a “personagem” é interessantíssima, mas Greeblatt também consegue fugir daquele mais do mesmo que sempre vemos em textos do tipo por aí.

(Publicado originalmente no Meia Palavra em 14 de janeiro de 2012)


  1. parece bobo dizer isso, como se fosse óbvio que só pessoas interessantíssimas merecessem biografias, mas a verdade é que o fato da pessoa ser famosa ou ter realizado algo grande não faz da vida dela algo que desperte o interesse do leitor 

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