Fim de Partida (Samuel Beckett)

fimdepartidaO cenário é pós-apocalíptico, marcado por um cinza e ausência de sons externos, como se ali fosse o último lugar que existia no meio de um nada. Neste abrigo vivem quatro pessoas, cada uma com uma deformidade que impede com que vivam plenamente (como se o fato de já estarem vivendo no meio do nada já não os impedisse). Quase não há alimentos, os medicamentos estão acabando, assim como uma boa parte da noção de tempo. É neste espaço que de desenvolverá toda a história de Fim de Partida, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, sujeito que tinha um estranho talento para botar o dedo fundo na ferida ao mesmo tempo que nos fazia rir com uma certa dose de humor negro (vide o caso da peça Esperando por Godot). Como diz uma das personagens da peça, “nada é mais engraçado do que a infelicidade“.

O centro da peça me pareceu ser a dinâmica entre Hamm e Clov. Não sou especialista em Beckett, não sei quais eram suas convicções políticas ou o que for, mas a relação do patrão com o trabalhador. Não quero arranhar teorias marxistas envolvendo burguesia e proletariado, o fato é que é difícil não perceber uma certa crítica ali. Hamm é um artista que na atual situação não consegue mais criar, já que está cego. Além de cego, ele também não pode mais andar – e é aí que entra Clov, que trabalha para ele como uma espécie de “enfermeiro”. Clov é seus olhos e seus braços, e ironicamente, sofre de uma condição que não o deixa sentar, nunca. E apesar dos abusos que sofre, das péssimas condições em que vive ali com Hamm, ainda assim Clov não vai embora. Repete centenas de vezes o aviso de que está partindo, mas nunca vai. É quase um eco de Vladimir e Estragon, que nunca vão embora porque precisam esperar Godot.

Nesse caso específico de Hamm e Clov a tradução do título para o português parece extremamente acertada: o fim de partida não representa só o final de um jogo, mas também o fato de que Clov não partirá. A peça é cíclica,começa como termina, com as personagens anunciando que acabou, mas por outros diálogos no texto sabemos que aquele é só mais um dia como todos os outros desde que eles chegaram ali. Porém, há no título original um outro sentido, relacionado ao jogo de xadrez: Endgame (título original) é o estágio final do jogo, quando há poucas peças no tabuleiro. Deixando claro, não é o xeque-mate, ele representa um momento do jogo e não um movimento. E se você der uma olhada na wikipedia sobre o endgame (no jogo), a reação é mais ou menos assim:

Ok, sei que parece estranho, mas vem comigo e vem sem medo que faz todo sentido. Copiando descrição lá do artigo da wiki:

Alburt e Krogius deram três características de um final:

  1. Finais favorecem um rei agressivo (Hamm é agressivo não só com Clov, mas também com os pais)

  2. Os peões passados aumentam significantemente em importância. (Ninguém sobreviveria sem Clov naquele lugar, e ironicamente ele é o único que pode acabar com a vida deles também)

  3. Zugzwang é comumente um fator em finais, e raramente em outros estágios do jogo.

Sabe qual a descrição para Zugzwang ximbalaiê? Trata-se de “uma expressão que indica uma dada posição no tabuleiro, na qual mesmo os dois enxadristas não tendo igualmente nenhuma opção favorável, um deles será obrigado a fazer o seu lance primeiro, em razão das regras do xadrez, indo para uma posição mais desfavorável ainda ou à derrota imediata.“. Uou! Mas calma que não é só isso. Tem mais um trecho do artigo:

Max Euwe e Walter Meiden dão cinco generalizações:

  1. Em finais de rei e peão, um peão a mais é decisivo em mais de 90% dos casos.
  2. Em finais com peças e peões, um peão dá uma vantagem vitoriosa em 50-60% dos casos. Se o jogador com esta vantagem também possui uma vantagem posicional, a vantagem aumenta ainda mais.
  3. O rei possui um importante papel no final.
  4. A iniciativa é mais importante no final do que em outras fases do jogo. Em finais contendo torres, a iniciativa vale no geral, no mínimo, um peão.
  5. Dois peões conectados e passados são muito fortes. Se eles alcançam a sexta fileira, são consideradas tão fortes quanto uma torre.

Acho que aqui os itens mais importantes para nossa interpretação são os dois últimos (já que os três primeiros só reforçam o que já foi dito antes). Como dito antes, algo que tanto Esperando por Godot e Fim de Partida têm em comum é que apesar de viverem em uma situação incômoda, as personagens pouco fazem para deixá-la. No caso de Fim de Partida não falo apenas de Clov, mas também dos outros três, especialmente Hamm. Em determinado momento Clov sugere que explorem para além do que eles podem ver do abrigo, que talvez exista vida/natureza, mas Hamm insiste que não. Já os pais de Hamm, Nagg e Nell, vivem em latas de lixo e não têm mais pernas – de certa forma consegui ver neles os “dois peões conectados” ali do item cinco.

Vocês me desculpem se pareço muito fangirl, mas eu que já tinha gostado de Fim de Partida sem estabelecer essa relação com o xadrez, fiquei ainda mais apaixonada depois disso e morrendo de vontade de assistir a peça no teatro porque Beckett é bem econômico com as rubricas. Por exemplo, li um texto que relaciona Clov ao “clown” do teatro, mas eu não vi tantas indicações assim de que ele deveria se comportar dessa forma. A própria caracterização das personagens pode fazer toda a diferença já que convenhamos, imaginar duas pessoas vivendo em latas de lixo é bem diferente de vê-las.

Nell e Nagg

 

Li a edição da Cosac Naify, com tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. O livro conta com uma série de imagens de apresentações da peça, bem como um texto com sugestões de leituras. Eu acabei aproveitando a última promoção da Cosac para comprar a caixa do Beckett, mas Fim de Partida volta e meia aparece em promoções vendido separadamente e com um preço razoável. Minha sugestão é que se encontrá-lo, compre logo. MESMO. Para entender o que estou dizendo, segue diálogo que aconteceu ontem aqui em casa:

A: Ah, sim. Chegaram os livros que eu ganhei de presente.

F: Ganhou de quem?

A: De você. Tem Beckett. Achava um absurdo não termos Beckett aqui em casa. Quero que Arthur leia Beckett um dia, vou ficar muito chateada se ele nunca ler Beckett.

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De modo completamente aleatório gostaria também de dizer que tem algo que chamou minha atenção no texto, breves momentos em que as personagens falam como se estivessem representando uma peça. Hamm fala em monólogo, Clov falando sobre “sair de cena”, ou ainda no diálogo em que Clov pergunta para que serve e então Hamm responde “Pra me dar deixas”. Acabei lembrando de uma aula da Célia sobre Rosencrantz e Guildenstern estão mortosdo Tom Stoppard (que sofreu forte influência do Beckett). A Célia comentou sobre o fato de que uma vez que Rosencrantz e Guildenstern eram personagens de uma peça, seus destinos já estavam escritos e não havia nada que eles pudessem fazer para mudar isso (e de fato, eles morrem, tal como acontece em Hamlet). Se formos fazer uma leitura semelhante, Hamm, Clov, Nagg e Nell estão igualmente presos, reforçando a ideia do caráter cíclico da peça, de que todos os dias Clov dirá que irá embora mas não partirá, ficando para sempre no abrigo com os demais.

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