Há alguns anos em Hollywood existia um tipo de “febre” entre os lançamentos, que era a criação de filmes que mostravam recortes das vidas de diversos personagens que acabariam se cruzando em determinado momento, em uma tentativa de passar para a telona a grande teia de aranha que criamos vivendo em sociedade. 21 Gramas e Crash são só dois exemplos de outros tantos que se sustentavam nessa premissa, que hoje em dia já nem é vista com aqueles ares de novidade.
Na literatura, porém, são poucos os que se arriscam nesse complicado exercício de recriar as relações humanas em seus mais diferentes níveis. E é nisso que se sustenta a força de A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan1, vencedora do prêmio Pulitzer de 2011. O romance poderia muito bem ser lido como uma série de contos, mas a ligação entre as personagens alinha a narrativa, que tem como palavra de ordem as relações. Fora isso nada é linear ou, digamos assim, lógico: o tempo avança e retrocede, o foco narrativo muda, há diferentes estilos de textos e por aí vai.
É realmente um trabalho admirável do ponto de vista formal. Não tem como não se encantar pela capacidade de Egan de ousar e acertar – já que trata-se de uma ideia que tinha tudo para ter um resultado catastrófico se mal elaborado. Há um efeito que esse “romance de relação” cria que é extremamente interessante. Tomarei como exemplo os dois primeiros capítulos, embora essa sensação se repetirá nos demais, por motivos óbvios.
No primeiro capítulo, somos apresentados a Sasha, que trabalha para Bennie, um figurão da empresa fonográfica. Sasha é cleptomaníaca, e seu capítulo é uma mistura de momentos de sua vida e conversas dela com seu psiquiatra, Coz. A narrativa fala brevemente de Bennie, sendo que a informação que mais chama a atenção sobre a personagem é o fato de ele salpicar flocos de ouro em seu café. Nisso, vemos a agonia de Sasha, a vontade de querer melhorar, deixar de roubar coisas, num desfecho até bem comovente.
Seguimos então para o segundo capítulo. É como se voltássemos para o ponto zero, um novo livro. O foco agora é Bennie, que passamos a conhecer melhor. Mas olha a graça do modo como Egan escreve: chega uma hora que some um objeto de Bennie, e Sasha o encontra. Bennie pensa em como parece que ela está sempre se antecipando, como encontra rápido as coisas dele e como ele depende dela. Quem leu o capítulo anterior sabe a explicação para a “eficiência” de Sasha sem que a autora precise falar uma só palavra sobre isso. Para ter uma ideia do que ela acaba criando com A visita cruel do tempo, dê uma olhada neste “mapa de personagens” feito por um fã do livro.
E esse efeito se prolonga em todas as outras páginas do livro, personagens que são citadas brevemente ganham então o foco, e vão agregando consigo a história de outras personagens, como que em uma tentativa de dizer que não somos nossa história, mas a de todo mundo que vive ao nosso redor. E nesse sentido o livro de Egan é impecável, e merece toda a atenção que está ganhando. É excelente de quando em quando ler uma obra de um autor que queira ousar na forma, na estrutura, ir além de apresentar um enredo legal.
O problema, na minha opinião, é que o brilho de personagens como os já citados Sasha e Bennie, ou ainda Lou e Scotty, não está em todas as personagens, e alguns capítulos acabam sendo desinteressantes. Há ali aquele efeito bacana de ver algo com outros olhos, mas em alguns momentos as personagens não despertam a curiosidade, você meio que lê para não perder o elo com as outras que virão. Talvez seja só impressão e em uma segunda leitura eu mude de ideia, mesmo porque até se acostumar com as mudanças de foco narrativo, alguns capítulos causam certa estranheza.
Mas é evidente que mesmo em momentos mais cansativos, ainda vale a pena a leitura, já que Egan acaba entregando capítulos fantásticos como o nono, daqueles que te fazem querer um dia ser escritor só para poder fazer algo parecido: uma ideia simples, porém genial. Somando a isso a ideia principal do enredo, a tradução do título para o português me pareceu bastante apropriada: há sim um protagonista, uma personagem constante em todos os capítulos, e é o tempo.
Todas as personagens de certa forma parecem estar lutando contra, ou ainda se dando conta da natureza do tempo. Esse confronto evidentemente dá um tom bem melancólico para o texto, mas há notas de humor, embora seja sutil. Não espere tiradinhas sarcásticas ao estilo de Nick Hornby, por exemplo, que a sua maneira também tem personagens com conflitos parecidos com os de Egan. O que nos leva a pensar que realmente não é o tempo que é cruel, mas o momento em que nos damos conta da presença dele.
(Post originalmente publicado no Meia Palavra em 14 de fevereiro de 2012)
presença confirmada na FLIP de 2012. ↩