E então vou virando as páginas e vejo que os contos contam com ilustrações legais, que o livro mantém a proposta de levar tudo com senso de humor até quando chega lá no final, com “palavras cruzadas tremendamente difíceis” e, puxa, que vontade de ler tudo logo de uma vez. Foi o que fiz. Aí começaram as decepções. A número um foi ver que o conto de Neil Gaiman não era inédito, já foi publicado no Brasil na coletânea Coisas Frágeis, que saiu pela Conrad. O conto em questão é Pássaro-do-sol, que honestamente nem é meu favorito do Gaiman. Sobre ele falarei além, mas continuemos com minha segunda decepção: descobrir que o que tem do Snicket não é propriamente um conto, mas uma introdução (embora eu ache que possa ser lido como conto, apesar do aspecto fragmentado). Sim, é muito bem sacada e tenho certeza que falará muito bem com o público-alvo do livro, mas convenhamos, não é algo exatamente original: Neil Gaiman na introdução de Fumaça e Espelhos inclui um conto dentro da introdução, como um prêmio para os que leem introduções. Snicket faz algo parecido, e até divertido, mas eu sinceramente esperava algo diferente (embora sim, um sorriso tenha aparecido no meu rosto quando li o trecho “Socorro!” gritou o Rei da Terra dos Ursinhos. “Paul Revere está me batendo com uma caixinha feita de madeira brilhante!”
Assim eu segui com a leitura de fato, que abre com o texto de Nick Hornby, Pequeno País. Enquanto lia ainda não sabia disso, mas era um dos melhores contos da coletânea. A notícia boa é que tem mais outros no mesmo nível desse de Hornby. A notícia ruim é que esse não chega nem perto do que Hornby já tenha feito de melhor. A premissa é boa, um país super pequeno onde todos são apaixonados por futebol, menos o narrador, um garoto que se vê obrigado a substituir o pai quando esse sofre um acidente. É engraçado, tem lá muito de Hornby, mas quem já leu Febre de Bola, por exemplo, sabe que ele é capaz de muito mais do que isso. E aí Hornby, que abre a coletânea, é um representante perfeito para o que veremos ao longo de Foras da lei barulhentos, bolhas raivosas, etc. (apelidado de FdLB,BR&AOCqnStS,qS,DdCVsSqaLqS,CE,SvdE,PqDnP,uHCLF&OHqnCA,dMqTVPQeG): não é um livro para quem já conhece os trabalhos anteriores dos autores, é um livro introdutório.
Não se trata de uma introdução a qualquer coisa que o autor já tenha publicado. É uma introdução à leitura como algo leve, divertido, sem neuras. É, em suma, um livro voltado para o público jovem, que ainda torce o nariz quando alguém fala sobre leitura. Aquela velha história que você já ouviu em algum lugar: ler é chato. Foras da lei barulhentos, bolhas raivosas, etc. mostra para esse tipo de leitor que ler pode ser divertido, o convidando para um mundo fantástico onde um pai faz as coisas mais insanas para proteger a família de tragédias, ou onde um garotinho é deixado sozinho em casa enquanto seus pais vão viajar. Dentro dessa proposta, o livro é realmente ótimo, e eu indicaria sem medo para quem deseja presentear um futuro jovem leitor, de modo a convencê-lo que a leitura pode trazer ótimos momentos, tanto quanto uma ida ao cinema, por exemplo.
O negócio é que para o leitor que já tem uma certa bagagem, esta coletânea acaba sendo um tanto bobinho. Não entenda errado: são contos divertidos, e podem valer pelo entretenimento. Mas, via de regra, os narradores parecem falar especificamente com crianças abaixo dos 12 anos de idade, salvo raríssimas exceções – e foi as considerando que defini o que achei de melhor entre os textos ali publicados, no caso, o já mencionado Hornby, Kelly Link (conto que achei melhor do que muitos dos publicados em O Estranho Mundo de Zofia e outras histórias) e Jonathan Safran Foer. Mas o melhor de todos, na minha opinião, foi curiosamente o mais breve, porém o mais criativo: Vendidos Separadamente, de Jon Scieszka.
A ideia é genial: o texto é basicamente uma sucessão de frases usadas em anúncios famosos nos Estados Unidos, como o “Just do it” da Nike, ou “Amo muito tudo isso” do McDonalds. E o legal é que as frases seguem essa regra, mas fazem todo sentido dentro da história! Confesso que aqui também contaram vários pontos o trabalho realizado pela tradutora Heloisa Jahn, porque convenhamos, alguns slogans são praticamente intraduzíveis e mesmo assim ela deu conta de manter a coerência do texto. Aliás, um ponto que chama minha atenção sobre esta coletânea ser voltada para um público ainda dando os primeiros passos como leitores é o fato de que no livro não há muito destaque para o tradutor da obra (tive que sondar lá no fim, na ficha catalográfica, para dar os devidos créditos ao trabalho aqui mencionado).
E aqui chega o momento em insistir que não é necessariamente um demérito o livro ser obviamente voltado ao público infanto-juvenil. Aliás, enquanto lia algumas histórias (como essa que acabei de mencionar), confesso que tinha mil ideias de como utilizá-las em sala de aula e fiquei me odiando um pouco por não estar trabalhando como professora no momento. É evidente que, como já dito antes, principalmente para o leitor que já teve oportunidade de conhecer outras obras dos autores presentes na coletânea, um gosto de decepção é um tanto inevitável. E se eu tivesse escrito este texto tão logo tivesse acabado de ler o livro, provavelmente a sensação geral que se teria é de algo muito ruim, o que não é exatamente a realidade.
O que chamou minha atenção para a proposta da coletânea, por incrível que pareça, foi justamente a decepção número um, o conto do Neil Gaiman. Um tempo depois, refletindo sobre Pássaro-do-sol e por que diabos ele estava ali, comecei a pensar em outros tantos contos dele que poderiam estar neste livro. October in the Chair (sim, meu favorito, confesso), The Price, How To Sell The Ponti Bridge… e então percebi que eles tinham algo em comum. TODOS os títulos que eu pensava faziam parte do livro M is for Magic (ainda não publicado no Brasil), cuja proposta central é… sim, mostrar para jovens leitores que literatura pode ser algo divertido. Então eu acabei dando uma relida rápida (principalmente nos que no final das contas foram “decepções”) e vi que inicialmente li o livro apenas como a Anica atraída pelos nomes por trás da coletânea, esquecendo de simplesmente questionar, durante a leitura, se aquele livro era realmente para mim.
O único problema, e isso fica claro justamente na necessidade de uma releitura, é que Foras da lei barulhentos, bolhas raivosas etc. é, no final das contas, um livro para o público jovem e só. Ao contrário de outros tantos que podem agradar crianças e adultos (como Contos de Lugares Distantes, pelo qual sou completamente apaixonada), este livro mira um alvo, acerta em cheio mas não deixa muito espaço para outras variações de público. Claro que é sempre gostoso ler algo do seu autor favorito. A questão aqui é justamente saber que ele tem muito mais potencial do que mostra no texto presente na coletânea. O que me leva a questionar se de repente os contos que achei mais fraquinhos, como “As competições de Cowlick”, de Richard Kennedy e “O telefone da ACSE”, de Jeanne DuPrau; tenham sido boas introduções às obras desses autores que até então eu ainda não tinha lido.
Então para o caso de você ter se perdido, vamos para o principal. Se é professor/pai/tio/padrinho/whatever e quer estimular o gosto de leitura em pessoas mais novas, indique este livro. Se é um adulto que conhece uma pessoa mais nova que tem um gosto especial por histórias fantásticas, dê este livro de presente. Mas se você está pensando em comprar o livro porque tem algum autor de que você gosta muito, veja bem se vale a pena. A realidade é que provavelmente o escritor neste caso não estava falando com você.
(Publicado originalmente no Meia Palavra em 20 de setembro de 2012)