Mas, felizmente, a MTV faz um negócio bacana (e que contraria completamente o argumento de que ela está acabando porque não soube acompanhar a “revolução digital”): no dia seguinte, na página do canal, lá estava disponível bonitinho o primeiro episódio para quem perdeu poder assistir. Comecei a acompanhar, episódio por episódio (bastante curtos, diga-se de passagem, cada um não passava de 20 minutos) e terminei a primeira semana já completamente encantada, procurando lista de músicas que tocaram e, principalmente, as referências literárias (falo disso mais adiante).
Confesso que estava disposta a odiar a protagonista, Ana. É uma coisa mais forte do que eu, tenho uma implicância automática por adolescente-maduro-mega-inteligente (e era como os primeiros comentários sobre a série apresentavam Ana). Qual não foi minha surpresa ao descobrir que Ana não era um clichê ambulante, mas uma menina solitária e estranhamente doce? Já no primeiro episódio, o contato com a namorada, o modo como contava tão empolgada sobre o que tinha lido para Selma, aliás, tão empolgada com seus sentimentos por Selma, tudo isso seguida de uma traição tão previsível mas ao mesmo tempo tão triste, que não tem como não simpatizar com Ana.
“Querida Selma, eu aprendi a ler histórias sem precisar contá-las para ninguém“. A frase parece abrir o momento de maior solidão na vida da menina. Já de uniforme azul (a troca de cor marcando o tempo, o passado em vermelho, o presente em azul) em uma nova escola, sofre a violência dos alunos. Jovens que potencializam a dificuldade que mesmo nós adultos temos de lidar com o que é diferente. Mas não é só a solidão. É o crescimento, aquele momento da vida em que tanta coisa muda tão rápido. Há uma cena em especial que pareceu sintetizar muito bem tudo isso, a solidão e as mudanças, com a versão de Kodaline para All My Friends tocando enquanto ela chega na festa de aniversário de Olavo (no segundo episódio). Claro que não haveria essa empatia com Ana caso a atriz (Bianca Comparato) não fizesse um ótimo trabalho, até porque muito nesse primeiro momento é construído pelo não dito, por sentimentos. Momento este que é, no final das contas, toda uma preparação para a chegada de Alex (no terceiro episódio), que colocará o enredo em movimento.
“Qualidades? Nenhuma. Pelo menos nenhuma humana. Defeitos? nenhum. Pelo menos nenhum desumano“. Assim como com Ana, Alex pedia um ator que conseguisse responder a necessidade de deixar claro para o telespectador o que está fora do diálogo, e Rodrigo Pandolfo deu conta do recado. O risinho de Alex para o professor um pouco antes de se apresentar, aquele olhar que parece equilibrar forças tão contrárias como o desprezo e a curiosidade. Ana obviamente se encanta por Alex, uma pessoa tão inteligente quanto ela. A primeira semana então acabou se encerrando com o que seria uma apresentação das personagens ou, como gosto de dizer, a distribuição das peças no tabuleiro.”X era novo na escola e foi contemplado com uma cadeira nas proximidades da porta. Y habitualmente sentava nessa cadeira e quando seus olhos se encontraram Y pensou ainda bem que hoje lavei meu cabelo.Pois assim Y ficava um pouco mais bonita. Y observou que Z observava como ela observava X. E assim surgiu um delta de eixo de olhares.”
A semana seguinte abre com o quinto episódio, onde Alex começa o jogo com Ana. “Um professor vai ser expulso. Sua mãe vai revirar o seu quarto. E o diretor do CTM vai tentar te expulsar do colégio.“. Os próximos capítulos vão mostrando o modo como Alex e Ana prendem o professor Tristan a um esquema que estaria dentro dessa “profecia” de Alex. É interessante observar também que aos poucos vai ficando claro que Alex realmente consegue manipular as pessoas ao redor, não só as diretamente envolvidas com o jogo (Ana, Tristan), mas outras – colegas que o auxiliarão.
Toda essa parte do jogo é um tanto perversa, eu sei, mas tem algo ali que acabou chamando minha atenção, o amor de Ana por Alex. Desde pequenos detalhes, como Ana pintando as unhas para ficar bonita para ele (o que já podemos perceber antes mesmo da mãe comentar sobre o fato com Alex), até mesmo o modo como ela fala dele nas anotações do caderno para Selma (aquela história da mão encostando nela e ela desejando que ficasse ali para sempre, como asas). O melhor momento para representar essa relação de Ana com Alex vem no começo da última semana da série, no nono episódio, a cena onde toca Video Games (interpretada por Boy George) enquanto Ana procura Alex na festa.
It’s you, it’s you, it’s all for you
Everything I do
I tell you all the time
Heaven is a place on earth with you
Tell me all the things you want to do
I heard that you like the bad girls
Honey, is that true?
Só que novamente a engrenagem do enredo começa a funcionar, de modo que chegamos ao ato final com as três principais personagens, Ana, Alex e Tristan, prestando depoimento sobre os eventos ocorridos na escola. Para mim o desfecho ficou meio vago (a seguir, spoilers):
Na realidade, acho que esse meu problema com o final aponta (surpreendentemente) para um aspecto positivo de A menina sem qualidades. O fato de o episódio ser curto não quer dizer que ele tomará pouco tempo de você. Ele pede reflexão, além de sentar e ver e ouvir passivamente a história do trio. Há de se lembrar também que a história é dividida em 12 episódios, mas que um conversa com outro, e detalhes da primeira semana ecoarão na última. Se é realmente o canto do cisne da MTV, então que ótimo legado. Não acho que o público-alvo da série sejam os jovens (ou, refraseando, não acho que seja “uma malhação cabeça”), mas é inegável que passando na MTV, ela acabará sendo assistida por muitos adolescentes. E o exercício que ela acaba propondo, esse outro jeito de ver tv é algo fantástico.
Para não falar, é claro, da quantidade de livro que acaba “indicando” por tabela a cada episódio, a começar pelo próprio A menina sem qualidades de Juli Zeh (que embora meio sumido na semana de estreia, logo depois deu as caras nas livrarias). Há Bolaño, Cortázar, Musil… Há uma infinidade de livros. Se a série fizer a gurizada correr atrás nem que seja de um desses tantos títulos, já será um lucro. Algumas vezes eu ficava louca por não conseguir reconhecer a referência (ou ver a capa do livro), então este post que o JLM fez com uma espécie de tracklist de livros da série vale o clique: lista de livros de A menina sem qualidades.
E por falar em tracklist, a já comentada trilha sonora da série. Quem acompanha o trabalho do Felipe Hirsch reconhece que ele sabe como ninguém encaixar músicas em cenas, de modo que funcionem quase que como complemento do texto. As duas cenas que comentei acima são emblemáticas, mas há outras tantas que seguem da mesma maneira, com a canção como mais um elemento ali, e não como algo alienígena. Só de ter lembrado de quanto gosto de Spit on a stranger do Pavement a série já teria valido a pena, haha. Mas também toca Darklands!! I found a reason!! That’s when I reach for my revolver!! Tanta música boa que depois de ver você sai correndo procurar para ouvir, até as que não conhece. Para ajudar no trabalho de busca, o pessoal da MTV elaborou listas de trilha sonora por episódio, disponíveis no site da série.
Para quem ainda não viu, todos os episódios estão aqui. Se essa história de fim da MTV for realmente verdadeira, espero que a série não caia naquele limbo bizarro dos direitos autorais (como aconteceu com programas da extinta Manchete) e que continue circulando por aí por muito tempo.
ATUALIZADO 17/08/2014: Com o fim da MTV, o link para assistir online quebrou, mas alguém colocou os episódios no Youtube. Então para quem não viu, estão disponíveis aqui.