Daquela história dos vários sentidos que uma palavra carrega, sempre que ouvia a Sol comentando sobre este livro eu pensava que a “sala” do título era a sala de aula. Coisa de professor, sabe como é. E qual não foi minha surpresa quando dou de cara com Oceane, uma designer que é, como conta a primeira frase do romance, rica e acaba usando seu dinheiro para manter um estilo de vida recluso. A jovem não sai de casa nem mesmo quando vai viajar: contrata um agente de viagens que organiza festas temáticas com estrangeiros no apartamento do andar de baixo para saciar sua curiosidade sobre as diferentes culturas.
A crítica ao efeito que a internet tem causado em nossas vidas é bastante óbvia, de como estamos cada vez mais fechados em nossos próprios mundinhos. Mas não se engane, Viagem ao fundo da sala não é só sobre isso. É meu terceiro livro do Fischer, e começo a chegar a conclusão de que com ele nunca é “só sobre isso”. A história de Oceane para mim parece vir quase que como uma desculpa para alinhavar uma série de pensamentos do autor sobre nós. Não encare isso como algo negativo (o plot em si é bem interessante, falo disso depois). Mas o que me conquistou em Viagem é a metralhadora de pensamentos ácidos de Oceane, o modo como ela observa a si mesma e aos outros, a ironia recortada das situações mais cotidianas, bem como as verdades que não costumamos falar em voz alta. Oceane como narradora não tem freio moral, e ela falará o que realmente pensa de algo, e por isso mesmo é tão encantadora.
De um ano para cá desenvolvi um hábito horroroso de dobrar o cantinho da página sempre que ali encontrasse uma passagem interessante. Comento isso porque meu Viagem ao fundo da sala está todo cheio de dobrinhas, partindo desde a segunda página até a última. E é complicado quando o melhor do livro são as ideias apresentadas nele, porque as frases retiradas de seu contexto perdem um pouco da força (e da graça). Então, eu poderia escrever um post inteiro com os pensamentos da Oceane, desde suas justificativas para sua reclusão até o desfecho do romance, e mesmo assim não faria justiça ao texto do Fischer, que consegue equilibrar muito bem a acidez com o humor.
Humor, sim. Do tipo mais nonsense possível (pense em uma vaca caindo sobre uma pessoa em um terraço de prédio e acho que você vai entender o que quero dizer). Seguindo o mesmo estilo de A gangue do pensamento e de alguns contos da coletânea Adoro Morrer, Fischer consegue surpreender o leitor pelos caminhos que toma em sua narrativa. Quem lê a primeira parte do livro, imagina uma história completamente diferente do que se apresenta a seguir. Eu, por exemplo, tinha certeza de que o livro se concentraria na reclusão de Oceane, mas curiosamente a parte mais longa do livro (a segunda), é uma anterior ao momento em que ela decide se fechar no próprio apartamento.
Aqui entra a questão da estrutura do livro, que na minha opinião é o único ponto fraco da obra. Viagem ao fundo da sala é dividido em três partes: na primeira, Oceane conta um pouco sobre sua vida atual, após ganhar um bom dinheiro como designer. Aos poucos vamos sabendo um pouco sobre suas manias, como é seu cotidiano e suas explicações sobre como chegou nesta situação. Até o momento que recebe uma carta de um ex namorado, que morrera há dez anos. Você pensa que a segunda parte desenvolverá de alguma forma este mistério, mas há uma quebra de expectativa quando descobrimos que a segunda parte descreve anos anteriores da vida de Oceane, quando trabalhou em uma boate que apresentava shows eróticos em Barcelona.
A quebra de expectativa é legal. O problema é que aí a parte de Barcelona vai se esticando num ponto que você quase esquece que tinha um mistério pendente lá da primeira parte. E é a parte mais engraçada do livro, mas se você pensa no romance como um todo, Barcelona poderia ser um outro livro. Até porque quando você chega na terceira parte, aquela Oceane do começo é só uma vaga lembrança, o que estraga um pouco o sentido ou ainda, o peso do que Walter faz por ela, que é lindo – e um momento inesperadamente tocante do livro, que eu achava que era puro ácido e escracho.
Mas veja bem, é um ponto fraco, porém não significa que isso torne o livro ruim. É, por mais estranho que pareça, o meu favorito do Fischer entre os três que li. Mas como eu disse antes, é uma história que conquista mais pelas ideias que apresente do que por sua forma. Tenho certeza que algumas pessoas podem ficar um tanto frustradas quando perceberem que a narrativa não será sobre as viagens no apartamento do andar de baixo, mas sobre uma viagem ao passado de Oceane, digamos assim. O que talvez explique algumas críticas negativas que o livro recebeu na época, embora no caso da que está neste link, eu discorde da parte em que fala que Oceane é uma heroína difícil de gostar – eu adorei a personagem, mesmo na porralouquice no máximo como acontece em Barcelona.
Enfim, não há melhor maneira de curar uma ressaca literária do que com um bom livro que nada tem a ver com o anterior. Para quem tiver alguma curiosidade, fica a dica: o livro está custando só 4,90 (sim, quatro-e-noventa) nas Americanas.