O fato é que para Rose, ainda uma criança, o tal do “poder especial” acaba se apresentando como um fardo, e não como uma dádiva. Isso porque a protagonista (e narradora) vive em um lar bastante disfuncional: não basta a mãe deprimida, ela tem um pai que parece bastante distante e um irmão tratado como prodígio mas que tem óbvios problemas para lidar com outras pessoas (inclusive Rose). Sem poder contar com a família e sem muitos amigos, a garota acaba recorrendo ao amigo do irmão, George, que a ajuda a “testar” seu poder, ou ainda, compreendê-lo melhor. A aproximação obviamente acaba virando uma apaixonite, mas sobre isso falamos logo mais. O fato é: esse primeiro momento da narrativa é fofo, embora não passe nenhuma ideia de onde é que vai dar (será uma história em que nada acontece? algo acontecerá? o foco será o poder de Rose?, etc). Mas assim que Rose começa a crescer, ela começa a ficar amarga e a narrativa também azeda. E juro que a partir de agora vou para com os termos relacionados ao paladar para falar de A peculiar tristeza guardada num bolo de limão, sério.
Enfim, qual o grande problema da história de Aimee Bender? O problema é que ela parece querer atirar para todos os lados, e acaba não abordando nenhum de modo satisfatório. Da Rose que prova o bolo de limão derivam na realidade cinco linhas narrativas: a mais óbvia, que mostra como a menina lida com essa habilidade; a história sobre como nos relacionamos com nossa família; a boa e velha história que conta como crescer é complicado; a de como ninguém se conhece de fato e, finalmente, o (im)provável romance dela com George. Siga qualquer uma dessas linhas e o que você vê é Bender só arranhando a superfície, sem se aprofundar no que precisava de mais profundidade. Parece que o maior cuidado que a autora teve foi com o plot da mãe – você consegue entender que ela se sentia solitária quando encontrou o amante e a marcenaria, que de certa forma preencheu o vazio que sentia com outros sentimentos (incluindo culpa, que Rose sentia no rosbife na hora do jantar).
O modo como Rose lida com a habilidade e a história sobre a dificuldade de deixar de ser criança acaba se entrelaçando, numa quase-metáfora sobre o que é se tornar adulto. Lembro de uma frase de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças que diz: “Adults are, like, this mess of sadness and phobias.“. A menininha doce vai dando lugar para uma jovem bastante triste, talvez até pelo contato que teve tão cedo com sentimentos tão ruins. Em algum momento alguém diz para a garota “Você é tão madura”, como se maturidade fosse sinônimo de observar o mundo com extremo cinismo. Confesso que passei a antipatizar com a narradora, porque ela parece claramente se achar superior às demais personagens. Algo como “eu sei o que você sente, sei que é ruim, e todo mundo só sente coisa ruim”. Ela simplesmente toca o foda-se e nunca relaciona-se de verdade com ninguém, mantém sempre uma distância “segura” que na realidade a torna tão reclusa quanto seu próprio irmão.
De qualquer modo, eu acho que se Bender tivesse seguido por essa linha, mantido o foco no crescimento de Rose traçando um paralelo com o desenvolvimento de sua nova habilidade, talvez a história teria me agradado mais (mesmo com a protagonista tão azeda). O problema é que do nada surge um capítulo sobre Joseph, o irmão de Rose, e por algum momento é quase como se ela nos dissesse: ei, tudo bem que eu tenho esse poder extraordinário, mas vamos dar uma espiadinha aqui no meu irmão esquisito porque talvez a história dele seja mais interessante. É uma ruptura que pode até se mostrar necessária mais para frente, mas que acaba desviando dessa ideia do crescimento, de como vamos nos tornando mais amargos a medida que vamos nos aproximando da fase adulta.
A questão é que esse desvio não funcionou. Deu ênfase para a questão familiar, ao fato de que nos desconhecemos completamente e sim, ajudou a trazer o plot de Rose e George para o centro da narrativa, mas o efeito foi aquele que comentei, de só arranhar a superfície. Joseph é extremamente complexo e precisava, na realidade, de uma história só dele, e não de um mocó na história da irmã. O fato de ele se transformar em móveis (ou sei lá, sumir quando em contato com eles) podia ter rendido muito mais, especialmente se lembrarmos a profissão que a mãe adota (que lida com móveis). Mas mesmo a relação entre Joseph e Rose é mal trabalhada. Do começo notamos um óbvio ressentimento de Rose por sua mãe amar mais o irmão do que ela, e notamos a necessidade da irmã em ser amada pelo irmão também – mas isso nunca chega a lugar nenhum. Joseph desaparece, e é isso.
E aí você pensa em como a figura do pai é deixada quase que de lado para só ser trabalhada mais para o fim, sendo que ele poderia contribuir bastante para a história (e aí ele acaba virando só mais uma das superfícies arranhadas). O pai de Rose parece saber o segredo de Joseph. Por que não falou disso antes? Ou ainda: por que nunca contou da habilidade especial do avô? E como assim ele se recusa a entrar em um hospital sendo que há uma possibilidade de a habilidade dele ser curar pessoas doentes? Páginas e páginas descrevendo os devaneios da mãe, o modo como ela pouco se importava com a família, e o pai fica assim, sem qualquer aprofundamento? Só uma personagem que “decidiu viver uma vida normal”?
É realmente uma pena, porque A peculiar tristeza guardada num bolo de limão tinha potencial para ser algo muito melhor. Não é exatamente ruim, mas não deixa de ser frustrante não ter o suficiente do que vai surgindo das memórias de Rose. Além disso, o tom extremamente melancólico da história faz com que você termine o livro com a sensação de… ok, quase usei uma palavra relacionada ao paladar. Enfim, eu sei que a vida não é perfeita e yadda yadda yadda, mas ver uma história de uma menina que enxerga o mundo com tal grau de cinismo é difícil de… argh, ok, é a última, prometo. Difícil de digerir.
PS: Uma das capas estrangeiras é tão linda quanto a nacional. Ah, e em inglês é “particular”, não “peculiar”. Gosto mais de peculiar. Adoro o som da palavra peculiar.
Putz, quando vi o título do livro, vim correndo ler a resenha porque, pqp, que título lindo. Mas, pelo que você falou, o livro é muito frustrante. =/
O título é muito lindo mesmo. E tem algo na voz da narradora que combina com isso (o tom de memória carregado de nostalgia, acho). Mas a autora realmente se perdeu. Sensação de que teve uma boa ideia e aí não soube bem o que fazer com isso e inventou um monte de coisa para que não percebêssemos hehe
Eu concordo com toda sua resenha. A autora começa com uma boa idéia e não se decide pra onde ir, acaba falando de tudo e de nada ao mesmo tempo.
A parte do Joseph é chata e estranha, nunca falam mais do pai, e não é necessariamente um mistério pra nossa imaginação. Eu tava gostando do livro até çomecar essa parte.
Se ela resolvesse seguir só sobre o crescimento, a descoberta de como o seu dom poderia ser a profissão e passar de um fardo a algo positivo.
(Continuando :P)
Poderia passar a algo positivo e o livro ganharia uma narrativa mais lógica e mais agradável e não seria tão esquisito.
Quem sabe não sairia da sua lista de piores leituras de 2013 .
É bem isso, Mila. Se ela conseguisse focar em um aspecto só, tenho certeza que o livro seria melhor. A ideia é boa, e tem muita coisa ali na personagem que dá para perceber o potencial da história. Só foi mal desenvolvida mesmo. 😐