O enredo encanta porque, embora melancólico, é de uma doçura surpreendente. Temos inicialmente um pescador chamado Crisóstomo, que ao chegar nos 40 anos se dá conta que por conta de fracassos na vida amorosa é agora um homem sem filho. E ele realmente acredita que um filho o tornaria completo, tiraria dele uma tristeza na qual mergulhara. “Via-se metade no espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausência e silêncios como os precipícios ou poços fundos“. Sai então procurando alguém que o aceite como um pai, para encontrar Camilo, metade como ele que com Crisóstomo forma algo inteiro, completo. Até que o menino sugere ao pai que busque uma mulher, para que seja o dobro.
Parece extremamente singelo e na realidade o é, e por isso é tão encantador. Valter Hugo Mãe pega um pedacinho da vida de personagens comuns, de vontades e sonhos tão comuns e conta uma história que ganha a empatia imediata do leitor. Você deseja que Crisóstomo seja feliz, assim como as pessoas que orbitam ao redor da personagem. Não são pessoas boas ou más, são apenas pessoas, e nisso está seu melhor aspecto. Mas como disse, não é só o enredo que agrada. No caso da estrutura narrativa, por exemplo, Hugo Mãe lança mão de um artifício muito interessante para nos prender à história e, mais do que isso, conhecermos suas personagens.
É algo um tanto parecido com o que Jennifer Egan faz em A visita cruel do tempo: cada capítulo foca em determinada personagem, como fosse peça de quebra-cabeça que o leitor vai montando aos poucos, tendo uma visão completa da história apenas quando termina o livro. Digo “um tanto parecido” porque o autor não muda foco narrativo ou gênero textual como Egan faz. É a mesma voz do narrador, que vai contando uma história que tem Crisóstomo como centro, e as personagens que se relacionam com ele direta ou indiretamente aparecendo aos poucos. Vemos Camilo chegando na vida do pescador, para no capítulo seguinte termos a história do nascimento de Camilo. Então temos a Isaura, Antonio e assim segue, cada qual chegando e completando o quadro que virá a ser a vida do protagonista.
E o genial disso é que de certo modo a narrativa copia justamente uma ideia de Crisóstomo sobre a solidão ou os relacionamentos com outras pessoas, que é o tema principal do livro. Diz a certa altura a personagem: ” (…) todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver uma pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e gere cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa para pessoa, que nunca estaremos sós.“
Então chega o terceiro ponto alto de O filho de mil homens, as ideias. Como já havia acontecido durante a leitura de A máquina de fazer espanhóis, durante a leitura desse livro eram frases e mais frases pedindo para serem grifadas, às vezes nem tanto pelo que diziam em si, mas pela beleza como era dito. Valter Hugo Mãe faz uma prosa com tom de poesia, cheia de imagens belíssimas como da tristeza sendo representada com a pessoa caindo dentro de si, de quando Isaura e Antonio sentam no sofá com Crisóstomo ou mesmo do pescador sentado ao lado e Isaura em frente ao mar. São pequenos quadros que aos poucos vão montano um belíssimo painel, que nos mostra bem isso: nunca estamos sós.
Livro belíssimo, em todos os sentidos que a palavra pode ser aplicada para uma obra. Agrada o leitor que busca o prazer estético de um grande romance em mãos, mas também aquele que quer apenas se deleitar com uma história simples e doce, sem ser piegas. E que permanece na memória mesmo após a leitura, deixando aquele gostinho de saudades de personagens tão boas.
Atualização do dia 30/03/2013: Para quem que como eu está morrendo de amores pelo Hugo Mãe, uma boa notícia: este ano chegou mais um por aqui, também pela Cosac Naify, O apocalipse dos trabalhadores.
(Post originalmente publicado no Meia Palavra em 03/03/2012)