Muitas pessoas torcem o nariz para livros de fantasia, isso é fato. Mesmo que autores como J.R.R. Tolkien e J.K. Rowling conquistem legiões de fãs, parece que livros desse tipo estão sempre com o estigma de “literatura de entretenimento”, como se por serem assim não tivessem qualquer qualidade. Não é verdade. O simples fato de conseguirem nos transportar para um lugar onde as regras do “mundo real” não são mais válidas, de nos permitir romper um pouco com nossa chata realidade já é, por si só, um aspecto mais do que positivo. Pensei nisso enquanto me maravilhava com Le Cirque des Rêves, criado por Erin Morgenstern em seu romance de estreia, O Circo da Noite. Não há outro verbo, é maravilhar mesmo, imaginando pequenos momentos descritos pela escritora e pensando em como isso ficaria lindo se visto “na vida real” (ou, pelo menos, em um filme).
A premissa é até bastante simples: uma garotinha de cinco anos é entregue ao pai logo após a morte de sua mãe. O pai é Próspero, um grande mago (embora não se refira a si mesmo como tal), que finge ser um ilusionista (se não ficou claro, a ideia é parecida com a do Teatro dos Vampiros em Entrevista com o Vampiro, só que ao invés de vampiros estamos falando de pessoas que conseguem manipular a realidade). O sujeito resolve envolver a filha em uma espécie de desafio com outro mago, que acolherá um pupilo para tal fim. O desafio em si não fica claro nem para a menina (Celia) nem para o rapaz (Marco) e ok, nem para o leitor – e em partes é isso que prende a atenção de quem tem o livro em mãos, descobrir o que é o tal do duelo entre Próspero e Alexander.
Acredito que é nesse momento que muita gente não conseguiu captar o espírito da coisa, classificando O Circo da Noite como um livro chato onde nada acontece. A questão é que por mais que a premissa acabe se baseando no duelo entre Celia e Marco (e, posteriormente, o amor que um nutrirá pelo outro), a história não é sobre eles. O título já dá a dica. A história é sobre o “circo da noite”, o Le Cirque des Rêves. E observando sob esse ponto de vista, Morgenstern entrega um livro genial, porque por mais detalhista que seja ao descrever a magia que ocorre no circo, ainda assim ela conta com a imaginação do leitor para “ver” as belíssimas imagens que cria, seja de páginas de papel flutuando como pássaros, seja de tecido de vestidos mudando gradualmente de cor, seja de um jardim todo de gelo.
O circo em si é fantástico, e é ótimo acompanhar sua história desde o início. Embora momentaneamente possamos crer que ele seja o palco do desafio entre Celia e Marco, na realidade ele é o desafio. Eles vão criando tendas e mais tendas de modo a mostrar seus poderes, e cada uma se revela mais bonita do que outra. Quando você imagina que um show de fogos de cores variadas é o máximo que Morgenstern consegue imaginar, logo a seguir ela vem com um carrossel com griffon e afins.
E há algo em sua prosa que lembrou muito dois escritores que gosto muito (e que também rompem com a realidade muito bem), Neil Gaiman e Ray Bradbury. A ideia do circo que chega sem se anunciar obviamente me fez lembrar de Algo sinistro vem por aí, mas alguns capítulos em que o narrador te coloca dentro do circo, descrevendo o que você está vendo pareceu muito com Neil Gaiman colocando seu leitor dentro do Sonhar ou dos Jardins do Destino. É uma técnica que funciona muito bem, aliada (é óbvio) ao cuidado que a escritora tem em criar as imagens. Basta dizer que é quase possível sentir o cheiro do caramelo da pipoca enquanto você lê o livro.
Sobre o romance dos protagonistas, de fato, quem leu o livro procurando casais típicos dessa nova onda de livros para jovens em que o romance é a base da narrativa (como Crepúsculo, por exemplo), fica uma sensação de que falta algo, ou até de que Morgenstern foi um pouco desleixada com o casal. Mas, de novo: o livro não é sobre Marco e Celia, é, acima de tudo, sobre o circo – que o amor deles cria. A melhor pista para isso é que o interesse de uma personagem pela outra só vem a surgir na metade do livro. Pode desapontar uma parcela de leitores de livros juvenis, mas a boa notícia é que a dose de sacarina acaba sendo bastante baixa, então é um livro que pode agradar também garotos (que não se acham tão românticos, vale completar).
O que me pareceu desnecessário no livro foi a linha de narrativa envolvendo Bailey, Widget e Poppet. É evidente que eles representam uma nova geração, um novo momento na história do circo, mas algumas vezes quando o foco da narrativa saltava do passado para o futuro (o tempo de Bailey) era até um pouco frustante – tinha lá um efeito de baldada de água fria. Mas aos poucos o papel das crianças na trama vai ficando mais claro, e esse efeito negativo vai diminuindo de tal forma que próximo ao fim a história mantenha o fôlego mesmo com os saltos no tempo.
O Circo da Noite foi para mim o que há muito tempo não encontrava em um livro: uma oportunidade de sonhar enquanto lia. Seja pelas belíssimas imagens criadas por Morgenstern (que sim, merecem uma versão cinematográfica, de preferência filmada pelo diretor de A Cela e Dublê de Anjo), seja pela garantia de diversão, é realmente o caso de livro para dar um belo tapa de luva de pelica em quem julga que livros de fantasia não prestam. O que não presta é deixar de sonhar.
Que boa surpresa! Engraçado que ontem eu estava olhando suas resenhas para ver se vc tinha feito sobre O Circo da Noite (que eu terminei há alguns dias), e hoje venho aqui e dou de cara com ela ^^
Adorei o livro também – gostei principalmente do fato de não ser “tão romance assim” (e, além da Celia e do Marco, gostei de outros personagens como Baley, Widget e Poppet). E também acho que o texto tem bastante do Gaiman e do Bradbury (que eu adoro – principalmente o Algo Sinistro, com aquele carrossel sinistro do Homem Ilustrado). Ótima resenha. Como sempre, captou a alma do livro.
Ah, agora estou lendo O Sentido de Um Fim (culpa sua, viu) e estou maravilhado.
Valeu Anica 🙂 🙂
Obrigada, Alexandre =D E quando terminar O Sentido de um fim vem me contar o que achou ^^ Acho que tomei tanto gosto por este livro que ele está quase arrumando um lugar no meu top10 favoritos de todos os tempos
Assim que eu terminar a leitura posto aqui, ok ?
Eu geralmente gosto de reler alguns livros, mas esse “O Sentido de um fim” eu acho que vou reler várias vezes para conseguir entender bem todas as nuances. Ele tb está entre os meus top 10 (a melhor leitura que fiz desde “Precisamos falar sobre o Kevin”) – e isso pq faz pouco tempo que li Morte Súbita, que me agradou muito tb.
Valeu 🙂
Morte Súbita? Eu estou com ele no kindle tem algum tempo, mas fico enrolando para ler porque li umas críticas tão mornas sobre o livro =/ Acho que vou colocá-lo mais para frente na lista de prioridades então, hehe
Eu não ia ler o Morte Súbita, pq tinha muitos outros na frente.
Mas eu ganhei o livro e decidi ler. Foi uma grata surpresa (tem um ou dois pontos em que a JK Rowling vacilou, mas isso é o de menos). Gostei muito, principalmente do final.