A edição que ganhei da Clara veio sete anos após a polêmica de 2002 envolvendo o canadense Yann Martel, portanto já veio “equipada” com alguns itens para quem deseja informações sobre a questão do plágio: uma introdução escrita pelo próprio Scliar em 2003, além de Zilá Bernd chamado De trânsito e de sobrevivências, que traça um paralelo entre as duas obras, mostrando suas óbvias semelhanças. Como não queria afetar meu julgamento sobre a questão, deixei para ler esse texto depois (mas que achei bem interessante, com algumas interpretações que passaram batido para mim inicialmente). De qualquer forma, acredito que os dois estarão presentes na nova edição, por motivos óbvios.
Então que Max e os Felinos é um livro bem curto. Considerando apenas o texto, dá pouco mais de 50 páginas, e isso em um formato pocket. Sim, é uma novela, mas como esses termos costumam dar alguma confusão, vamos lembrar que por novela entendemos algo mais longo que um conto e mais breve do que um romance, certo? A novela é dividida em três capítulos: O tigre sobre o armário, O jaguar no escaler e A onça no morro, em uma ideia bastante clara de relacionar um felino diferente para cada momento na vida da personagem principal, Max Schmidt, quase que marcando o amadurecimento dele, acompanha da infância até a fase adulta.
Em O tigre sobre o armário ficamos conhecendo a infância e adolescência de Max, que vivia com o pai e a mãe em uma região humilde de Berlim. O pai vendia peles de animais, e o depósito era o refúgio favorito do garoto, onde teve inclusive sua primeira experiência sexual. O tigre do título era uma figura empalhada que enfeitava a loja da qual Max sentia um terror absurdo. O fato de, em dado momento, o narrador dizer que Max não gostava da loja porque era território do seu pai e do tigre, me faz pensar que o medo que Max tinha do tigre era na realidade o medo que ele tinha do pai.
Mas então a personagem cresce, vai estudar. Acaba se envolvendo com uma mulher casada, e o marido acaba o denunciando para a polícia secreta. Max então precisa escapar, e depois de alguns desencontros embarca no Germania, que, numa série de azares que quase fez eu lembrar do Cândido do Voltaire, afunda enquanto está em alto mar. A primeira preocupação do jovem é se proteger do sol, e quando ele pensa em fazê-lo usando uma caixa que vê boiando no mar, sem querer liberta um jaguar que salta para dentro do seu bote.
Começa então o segundo capítulo, O jaguar no escaler. A relação de Max com a fera é centrada na alimentação: ele sabe que enquanto conseguir sustentar o jaguar, não correrá risco. Há inclusive uma espécie de troca de favores, já que em determinado momento o jaguar o salva de um tubarão. A tensão constante acaba aumentando quando fica claro que não há mais alimento para ambos – levando ao inevitável choque. Já li algo sobre o jaguar simbolizar o medo do nazismo, mas acho que considerando que aquela fuga é um rompimento definitivo com os pais e a pátria, parece mais o medo de tornar-se adulto, começar a vida de modo independente. E é o que acontece quando Max acaba chegando com vida em Porto Alegre.
No último capítulo, A onça no morro, vemos Max se naturalizando brasileiro para que conseguisse comprar um sítio na região serrana. Começa uma vida simples, solitária e um tanto melancólica até que se apaixona pela índia Jaci, com quem tem uma filha. Tudo corre bem até a chegada de um novo vizinho, que logo descobre ser o marido de Frida, o mesmo que o denunciara e fizera com que tivesse que fugir para o Brasil. Vem aí então o terceiro felino, ou ainda, o terceiro conflito: uma onça fugira de um caminho e estaria rondando a região. Esse felino sim, eu vejo como um conflito de Max com seu passado, principalmente o nazismo. Aliás, dos três capítulos foi o que mais gostei, a sensação que dá é que os dois são realmente só uma preparação para o que vem nesta última parte: a reação dos estrangeiros ao casamento com Jaci, a reação dos brasileiros sobre a nacionalidade de Max e mesmo a reação de Max com a chegada do novo vizinho: é o medo tomando suas mais variadas formas.
É uma história tão complexa e sensível que não tem como não admirar a capacidade de Scliar de colocar tudo isso em tão poucas páginas. Há livros gigantes que não comovem ou colocam você para pensar como acontece com Max e os Felinos. O que, de certa forma, nos leve finalmente à questão…
E aí, Anica, plagiou ou não?
Enquanto lia Max e os Felinos entendi um pouco do rancor do Scliar. Eu continuo achando que os limites entre plágio e inspiração na literatura são bastante imprecisos, mas sinto agora que o tal do agradecimento do Martel na introdução de As aventuras de Pi deveria ter vindo desde o começo, e aí não haveria problema algum: caberia o reconhecimento à “fagulha”, e ninguém usaria o termo plágio.
Porque são livros distintos em todos os modos que se possa imaginar. Pensando de modo mais “técnico”, temos:
Max e os Felinos | As aventuras de Pi | |
Forma de narrativa | Novela (ou Contos interligados) | Romance |
Estrutura | Três capítulos (ou três contos) | Três partes divididas em vários capítulos |
Narrador | Terceira pessoa | Alterna entre terceira e primeira pessoa |
Enredo | Linear | Não-Linear |
E pensando em termos de enredo mesmo, há sim a ideia do jovem no bote com um felino – que é exatamente a “fagulha” que Martel agradeceu depois (tarde demais, agora vejo) a Scliar. Há mais dois elementos que acho semelhantes: o pai forçando Max a buscar o jornal para enfrentar o medo do Tigre empalhado tem qualquer coisa que lembra o pai de Pi ensinando sobre o perigo de “humanizar” uma fera, forçando os filhos a verem um tigre matar um bode. Além desse, outra passagem é a de em que Max tenta roubar peixe do Jaguar, apresentando um conflito bem parecido com um que Pi também passa.
Mas fora isso, vejo obras completamente distintas, inclusive com mensagens distintas. Enquanto Scliar fala do enfrentamento dos nossos medos, Martel parece de alguma forma querer indicar que o que nos diferencia dos animais é nossa fé. Enquanto em Scliar o felino é uma metáfora para o outro, em Martel o felino é uma metáfora para si mesmo (considerando especialmente o depoimento em que Pi revela que não havia bichos no bote, e que ele era Richard Parker).
Então não consigo ver a situação como um plágio, mas como uma tremenda falta de tato de Martel: seja lá qual foi a fonte que fez com que ele chegasse à ideia do náufrago num bote com um tigre, a menção ao autor original deveria ser feita. Fico inclusive com as palavras do próprio Scliar sobre os dois livros:
Ali estava a minha ideia, mas era com curiosidade que eu seguia a história; queria ver que rumo tomaria a narrativa – boa narrativa, aliás, dotada de humor e imaginação. Ficou claro que nossas visões da ideia eram completamente diferentes. As associações que eu fiz são diferentes das que Martel faz.
Resumindo, ainda acho que as pessoas deveriam largar mão do ufanismo besta e já odiar automaticamente um livro que sequer leram por conta de uma injustiça causada contra um autor nacional. A obra de Scliar merece ser conhecida e Martel não agiu da melhor forma – estes são pontos inquestionáveis. Mas reforçar essa polêmica alardeando plágio (ou mesmo dizendo que o livro do Martel é ruim, como já vi gente publicar por aí como argumento de defesa de Scliar. Você pode achar o livro ruim, mas isso jamais será um argumento sobre a questão) é simplesmente uma bobagem.
Os dois livros estão aí, publicados há anos e nada vai mudar isso. A decisão de conhecê-los é sua.
Algumas observações finais:
- Pode ser vício de professora de inglês, mas sempre tive na cabeça que jaguar é onça.
- Não descarto a possibilidade de ler Max e os Felinos como três contos que se interligam, mas prefiro a teoria da novela, o que é justamente o elemento de coesão – tornando três contos em três capítulos.
- O trecho de Max e os Felinos que a L&PM disponibiliza no site tem justamente o texto já mencionado do Scliar sobre a obra e As aventuras de Pi. Se quiser ler, basta clicar aqui.
tenho o livro do pi antes da polêmica, acho que a única coisa que achei chato foi o autor do pi dizer que ele viu a idéia do sclair e achou ela má escrita, tipo cuspiu onde comeu ? 🙁
Foi o que piorou a deselegância toda da coisa – se é que procede mesmo essa informação, já vi essa história aparecer de tantas formas que já nem sei se ele realmente disse isso. Mas certeza que já pegou mal aproveitar ideia sem mencionar fonte, aí esculachar a fonte depois que descobrem qual é ficou ainda pior.
é anica eu vi no videio da editora do Scliar acho que pelo que entendi, ele se chateou com dois fatos; 1- o Martel ganhou um man booker prize, que em paises de língua inglesa só fica abaixo do Nobel, e no caso o Scliar não poderia ter ganho já que o original é em português e isso ai dá má educação do Martel
agora momento egoísta meu ainda bem que quando ganhei era a edição do nova fronteira mais ainda tinha o nome a vida de pi e sem capa do filme *.*, a segunda edição dele no Brasil acho kkkkkkkk
inveja >
isso é mesmo, deve ter N varaições, após ler a vida de pi vou comprar o do scliar, já que sou fã dele 😀
Muito bom o texto Anica! Também não concordo com esse ufanismo besta que já sai tachando de ruim algo que nem conhece (na maioria dos casos, nem o livro de Martel e nem o de Scliar).
Não vi o filme e toda essa confusão sobre a questão do plágio, a falta de tato do Martel e a mágoa do Scliar foi o que me deixou com mais vontade ainda em conferir ambas as obras. Até tentei comprar Max e os Felinos mês passado, mas como a edição antiga está esgotada nas livrarias decidi esperar essa nova edição.
ah, e até onde sei jaguar é sinônimo de onça mesmo, no caso, a onça-pintada.
Hummm, bom saber. Acho que o termo jaguar é usado porque Max é um alemão sem contato com a língua portuguesa quando está no bote, e aí quando aparece a história da onça no último capítulo ele já morava aqui no Brasil há um bom tempo, se familiarizando com a língua. de repente é isso hehehe
Obrigada, Nubia ;D Depois que ler Max e os Felinos me conta o que achou, tá?