Antologia Poética (Carlos Drummond de Andrade)

Então você pensa que não conhece muitas poesias de determinado escritor e resolve ler uma “antologia poética” para ter uma noção mais ampla da criação literária do poeta. Lê um poema, vai para outro e todos os versos começam a passar um tom de estranha familiaridade. Tão estranha, que em alguns poemas você começa a prever o verso seguinte (e consequentemente se dá conta de que conhecia o texto de cor). É quase como uma sensação de voltar para casa, ou até mesmo de reencontro com um amigo – foi o que senti ao lerAntologia Poética de Carlos Drummond de Andrade.

É evidente que muito da obra de Drummond foi devidamente apresentada para mim em sala de aula (acredito que o mesmo deve ter acontecido com outras pessoas, especialmente com os que já foram vestibulandos). Mas a sensação de familiaridade não vem só do fato de muitos dos poemas do escritor serem bastante conhecidos e estudados, mas também pelos temas abordados pelo poeta e o modo como ele faz, o que fica bastante evidente nesta coletânea.

A antologia foi organizada pelo próprio autor em 1962, e é dividida em nove partes que, segundo Drummond, representam “o indivíduo, a terra natal, a família, amigos, o choque social, o conhecimento amoroso, a própria poesia, exercícios lúdicos, uma visão ou tentativa de, da existência” (pg.15). Mas a abordagem do poeta é tão sensível, que ele poderia tratar de temas completamente alienígenas e ainda assim conseguir fazer com que o leitor se identificasse com seus versos. Portanto não é à toa que muitos recitem por aí trechos de poemas dele (mesmo que às vezes sem nem saber a quem pertencem). É um daqueles casos em que o poeta parece assumir o papel de porta-voz da humanidade, colocando em palavras (e versos!) o que muitos sentem.

Dessa voz é possível perceber que há uma constante melancolia nos versos de Drummond. Mesmo quando fala da terra natal (Itabira, Minas Gerais) é com nostalgia, aquela sensação de perda de um tempo e espaço que não voltam mais. O eu-lírico de Drummond é quase sempre um observador perdido1 em devaneios, especialmente sobre o ser e o sentir, como fica evidente nos versos finais de Coração Numeroso: “A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu/sou eu a cidade/meu amor”. Ou ainda em Os Poderes Infernais: “o que sou, o que sobro, esmigalhado./O meu amor é tudo que, morrendo,/não morre todo, e fica no ar, parado“. É, no final das contas, o “sentimento do mundo” – e nisso dá para incluir também os poemas de forte cunho social, como Morte do leiteiro, por exemplo. A metalinguagem também se faz presente, de forma mais óbvia em todo o capítulo Poesia Contemplada.

E como para combinar com esse tom humano dos poemas, no geral a linguagem de Drummond é bastante simples, o que auxilia a aproximação com o leitor (especialmente aqueles que possuem algum receio de que poesia seja algo como escrever em códigos). Porém, é importante destacar que a simplicidade não tem nada a ver com um desleixo por parte do poeta. É, isso sim, quase que a transformação do poema em conversa, em confissão, ou até mesmo em “causo”. Como quando começa Cantiga de Enganar avisando “O mundo não vale ou mundo,/ meu bem” ou concluiCidadezinha Qualquer com “Eta vida besta, meu Deus“. Com isso, Drummond parece nos lembrar que poemas devem ser lidos em voz alta, ou, no mínimo, devem ser ouvidos. Se você tem alguma dúvida disso, leia No Meio do Caminho (sim, “o da pedra”) em voz alta, veja como faz diferença.

Nesse sentido, do poema lido em voz alta, chama a atenção que quanto à forma o poeta parece ter preferência pelos versos livres, embora sonetos sejam também bastante recorrentes. Para quem tem a (falsa) impressão de que só existe sonoridade em versos que rimam, sugiro a leitura (em voz alta, é claro) de O enterrado vivo batendo as mãos na mesa para cada vez que a palavra “sempre” é repetida – repare como soa a alguém batendo no caixão. Drummond não canta só o nosso sentimento. Ele consegue trabalhar com as palavras de modo a fazer uma poesia extraordinária também quando pensamos no aspecto formal.

Não estudo a obra de Drummond para afirmar que esta antologia represente realmente a totalidade de seu trabalho (o poeta faleceu quase 20 anos após a primeira publicação deste livro), mas a sensação que tenho é que os “grandes” – ou pelo menos os mais famosos – estão presentes, e que certamente é possível ter uma noção da qualidade do trabalho do escritor, assim como de alguns aspectos recorrentes de sua poesia. E sim, sem sombra de dúvidas, é um daqueles livros para se ter na estante e tirar de quando em quando, para abrir em uma página aleatória e reler um poema e repetir a gostosa sensação de voltar para casa.

Em tempo, alguns versos do meu favorito (O Amor Bate na Aorta):

(…)
Olha, o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.”

(Este post foi originalmente publicado no Meia Palavra em 23/07/2012)

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