Por falar em Ficção de Polpa, saiba que se você é como eu mais um daqueles fãs da série que aguarda ansiosamente o quinto volume, 24 Letras por Segundo vem como um ótimo remédio para aliviar a espera. Como boa parte dos contistas já publicaram nos volumes do Ficção de Polpa (Bernardo Moraes, Rodrigo Rosp, Juarez Guedes Cruz, Silvio Pilau, Bruno Mattos, Samir Machado de Machado, Antônio Xerxenesky e Rafael Bán Jacobsen), há ali uma gostosa sensação de familiaridade, é quase o mesmo que dizer que deu para matar saudades.
Mas sim, 24 Letras por Segundo tem vida própria. O que une os contos da coletânea é a proposta de passar para o papel em forma de conto o que seria um filme típico de determinado diretor. Cada autor escolheu um diretor para representar em conto que sempre abre com a já comentada ilustração do título, além de uma mini-bio do autor, filmografia do diretor e um comentário do autor sobre o cineasta que “adaptou” para o livro. Alguns focam os temas principais dos filmes (como o de Tarantino), outros tentam conversar com algum filme em questão (como o de Shyamalan e o de Almodóvar), outros captam a essência dos trabalhos do diretor (como o de Spielberg). O resultado geral, como é de se esperar, é ótimo.
Fica a pergunta: preciso ser um cinéfilo para gostar do livro? A resposta é não. Muito embora seja evidente que reconhecer seu diretor favorito em um texto, ou mesmo perceber referências e brincadeiras com filmes que você gostou, faz parte da experiência de leitura que 24 Letras por Segundo propõe, mas ele não precisa ser lido só desta maneira. Digo isso porque confesso aqui minha completa ignorância sobre a filmografia de alguns diretores escolhidos (ok, para falar a verdade “a completa ignorância sobre alguns diretores escolhidos”) e mesmo assim gostei dos contos, o que acabou trazendo o extra de atiçar minha curiosidade para ir atrás de alguns filmes. Então se você não se acha tão entendido em cinema, saiba que sim, dá para se divertir muito com 24 Letras por Segundomesmo assim.
Sobre os contos, mantendo a tradição da casa dá para dizer que estão todos para acima da média para excelentes. A coletânea abre com O túmulo frio de Mimi Meyers de Bruno Novaes (referência a Tarantino). A única coisa que faltou nele foi referência às músicas da década de 70 que costumam aparecer nos filmes do norte-americano, mas fora isso é quase como se você estivesse acompanhando algo novo de Tarantino, é divertidíssimo.
Segue então com Um mar para Carmina de Monique Revillon (referência a Tim Burton) que conseguiu captar muito bem o tom fantástico e poético dos filmes de Burton, assim como Rodrigo Rosp nos entrega Todos os homens dizem eu te amo (referência a Woody Allen) que tem o típico personagem neurótico cheio de tiradinhas ácidas especialmente sobre si, muito engraçado.
Inquebrável de Juarez Guedes Cruz (referência a M. Night Shyamalan) traz uma proposta interessante de narrarCorpo Fechado a partir do ponto de vista da mãe da personagem Elias. Meu único pé atrás é que eu realmente não gosto deste filme, então digo com tranquilidade que o conto consegue ser bem superior à película.
Reginaldo Pujol Filho assume a difícil (pelo menos eu acho) tarefa de trazer os irmãos Coen para o papel, com o conto Irmãos que não só ficou muito bom, mas também diverte ficar procurando o modo que o autor conseguiu encaixar cada um dos títulos dos filmes deles na história. Após este conto, por coincidência vem dois seguidos cujos diretores homenageados eu conheço pouco, então acabei lendo sem buscar as referências, no caso O Conchário de Pena Cabreira (referência a Terry Gilliam, que só conheço pelo lado Monty Python) e O elevador de Pedro Gonzaga (referência a Wong Kar-Wai, de quem assisti absolutamente nada) e aqui reforço o que já disse antes sobre não haver necessidade de conhecer os filmes e os diretores para apreciar os contos.
Vem então um dos meus favoritos da coletânea, No trânsito de Silvio Pilau (referência a Kevin Smith). Muito engraçado, lembrando os melhores momentos de Smith (que considero qualquer coisa até Dogma), ele vem em forma de roteiro. Depois temos Os velhinhos de Milton Ribeiro (referência a Roman Polanski), trazendo uma versão de escritores a famosa história do pacto com o diabo (e até Roberto Bolaño aparece ali!). Então a coletânea segue com os ótimos Esqueletos no armário de Eric Novello (referência a Bernardo Bertolucci) e Se não ficares até o fim, eles te passam a perna de Bruno Mattos (referência a José Mojica Marins). No caso do último eu desafio qualquer leitor a ler sem imaginar a voz do narrador como a do Zé do Caixão!
Temos então um toque francófono com Três copos de Diego Grando (referência a Sylvian Chomet) e Visitas de Samir Machado de Machado (referência a Spielberg). Esse conto já esteve presente em outra coletânea da Não Editora, o Ficção de Polpa 2, mas é tão legal que vale a pena reler (mesmo). Sobrevivendo à razão de Antônio Xerxenesky (referência a Hal Hartley) foi um daqueles casos de diretor que até então eu desconhecia e que agora estou morrendo de curiosidade de assistir.
O desfecho da coletânea fica por conta de O paradigma do mexilhão de Rafael Bán Jacobsen (referência a Almodóvar), O fabuloso Juarez de Victor Paes (referência a Milos Forman) e Um dia na vida de David Lynch de Márcio André. Os três conseguem captar muito bem a assinatura desses diretores, e o que é interessante é que apesar da homenagem, conseguem ser originais mantendo o que acredito ser um estilo próprio.
Então se você é cinéfilo e também gosta de ler, não perca tempo e corra atrás de 24 Letras por Segundo – eu duvido que você não encontre nele algumas boas horas de diversão, nem que seja a brincadeira de encontrar referências. Mas se cinema não é muito sua praia, não desanime: a coletânea é tão bacana que é capaz de despertar em você um gosto que até então você desconhecia.