Miller era um crítico ácido e astuto, e em suas peças em determinados momentos até bastante sutil. Do recorte de um dia comum na vida de pessoas ordinárias é possível tirar tanto que chega a ser injusto reduzir a importância de sua obra só à literatura norte-americana: ele fala de homens, tão reais, tão tridimensionais que poderiam estar falando de suas tristezas, paixões, medos e sonhos em qualquer lugar do mundo. É o que se pode perceber na coletânea A morte de um caixeiro viajante e outras 4 peças de Arthur Miller, lançada pela Companhia das Letras com tradução de José Rubens Siqueira.
O livro está organizado em ordem cronológica, começando com O homem de sorte (1944), seguido de Todos eram meus filhos (1947) depois A morte de um caixeiro viajante (1949), As bruxas de Salém (1953) e fechando com Um panorama visto da ponte (1955). Ao longo do texto das cinco peças alguns temas se repetem, como a ideia do self-made man, o homem de origem pobre que a partir de muito trabalho acaba melhorando sua posição social, conceito bastante ligado ao do sonho americano, a liberdade da terra estadunidense que prometia a possibilidade de sucesso e prosperidade que os europeus não encontravam mais em seus países.
Um homem de sorte (The Man Who Had All the Luck), embora anterior a conclusão da Segunda Guerra Mundial já traz alguns desses elementos. David é uma personagem que você provavelmente já viu em sua própria vida: aquele sujeito que ganha tudo, em que tudo dá certo, sem ter que fazer qualquer esforço para tal. O problema é que como uma personagem de tragédia grega, ele não aceita esse que seria seu “destino”, não se conforma com tanto sucesso em sua vida quando convive com pessoas como Amos, que treina a vida inteira para jogar baseball mas nunca consegue de fato reconhecimento. Em dado momento a personagem explode e pergunta “Por quê? É tudo sorte? É isso que é?”.
Talvez até mesmo pelo fato de David querer lutar tanto contra a facilidade com a qual sua vida se arranja que o leitor acaba simpatizando com o protagonista, o que é fundamental para o efeito no desfecho. Miller acaba cutucando forte a ferida daqueles que tanto lutam para conseguir algo e são sempre sombra de outros que talvez nem tenham talento, apenas sorte.
A peça seguinte, Todos eram meus filhos (All My Sons) já traz a marca da Grande Guerra, já que o foco da ação se divide em dois fatos principais: o sumiço na guerra de Larry, o filho dos Kellers; e um caso envolvendo a venda de peças estragadas para aviões de guerra, o que causou a morte de 21 soldados. As peças estragadas foram despachadas pelo pai de Ann, antiga namorada de Larry e que retorna agora para casar com o irmão dele, Chris. Porém, ao longo da história ficamos sabendo que ele só as despachou porque recebeu orientações de Joe Keller para fazê-lo. A peça é bastante melancólica, com uma conclusão tristíssima – não espere um final feliz de Walt Disney aqui.
Chega então a peça mais famosa de Miller, A morte de um caixeiro viajante (Death of a Salesman). Com esta peça Miller ganhou um prêmio Pulitzer e três prêmios Tony e ao ler não dá para negar o valor dessa obra. É talvez a que melhor critica a ideia do sonho americano, através de Willy Loman (não consigo deixar de pensar em um trocadilho Loman = Low man), que busca cegamente pelo sucesso na vida através de seu trabalho. O fracasso nos negócios acaba fazendo com que ele cobre ainda mais este sucesso a partir dos filhos, Biff e Happy, o que leva a consequências trágicas. Todo o drama da peça reside no fato de Willy abraçar com tanta força a ideia do sonho americano, e não perceber o mal que está fazendo à própria família por conta disso.
As bruxas de Salém (The Crucible) baseia-se na história real dos julgamentos das bruxas de Salém, em Massachussetts, que aconteceram no século XVII. De acordo com o próprio Miller1, trata-se de uma alegoria sobre o Macartismo, como uma resposta inclusive ao fato de o próprio autor ter sido denunciado como comunista e ter que prestar depoimentos para o Comitê Parlamentar de Atividades Antiamericanas. Algo sobre a indústria do medo, de quanto alguns podem ganhar causando pânico aos outros. A questão é que embora tendo em mente o Macartismo, com seu Proctor e Abigail, Miller faz uma história universal e atemporal, vide como a “guerra contra o terrorismo” de Bush pode se encaixar tão bem nessa crítica. É uma peça forte, que certamente sobreviverá ao tempo por falar tanto para qualquer tipo de leitor.
Por último, chegamos à peça Um panorama visto da ponte (A View from the Bridge), que também traz as personagens melancólicas e trágicas já agora bem conhecidas de Miller. O sonho americano é mais uma vez duramente criticado, especialmente quando Catherine, criada por Eddie e Beatrice, se apaixona pelo italino Rodolpho, e por conta do que lhe diz Eddie começa a desconfiar que o namorado queira apenas o green card. Há um momento da conversa das duas personagens que Rodolpho diz “Você acha que eu ia carregar nas costas uma mulher que eu não amasse só para ser americano? É tão maravilhoso assim? Você acha que não tem prédios altos na Itália? Luz elétrica? Ruas largas? Bandeiras! Automóveis! Só trabalho que não tem. Eu quero ser americano para poder trabalhar, esta é a única maravilha aqui!“
Há ainda o cuidado de Miller com o roteiro em si, fazendo com que o leitor quase consiga imaginar o palco, iluminando Alfieri enquanto ele narra a história de Eddie e sua família. É inclusive um aspecto bastante positivo, porque tem tudo para agradar até aqueles que não gostam de ler textos para teatro.
A morte de um caixeiro viajante e outras 4 peças de Arthur Miller é uma ótima coletânea, que traz o que há de melhor desse dramaturgo e consegue por si só explicar o motivo pelo qual ele é um dos grandes nomes do teatro contemporâneo. E principalmente o real motivo pelo qual ele deveria ser lembrado, já que em inúmeras biografias o que se vê em destaque é o fato de que ele foi casado com Marilyn Monroe.