O livro começa com um encontro entre conhecidos em uma noite de Natal. Um deles promete que contará uma história assustadora, assim que tiver em mãos um manuscrito que lhe foi confiado décadas atrás. Quando passa a ler o manuscrito, ficamos sabendo que é o relato de uma governanta que aceitou o trabalho de cuidar de duas crianças (Miles e Flora) em uma casa no interior da Inglaterra, com a condição de que não procurasse jamais o tio e guardião das crianças para relatar problemas. Mas mal ela chega na casa, e logo eles começam a aparecer – o garoto, Miles, é expulso da escola e a governanta passa a ver fantasmas de antigos empregados da mansão, e acredita que eles desejam corromper as crianças.
Toda a ação é desenvolvida de modo a chegar ao grande clímax da novela, que se encerra de forma um tanto dúbia para o leitor, que tem como informação apenas o que a governanta relata. E esse é um dos maiores trunfos de A outra volta do parafuso: por causa da forma que é narrado, o texto deixa a dúvida aberta e não há certeza alguma se existem de fato os fantasmas que a governanta alega ver ou se eles são apenas fruto da imaginação da moça.
Dois livros em um
Por causa desse tom ambíguo o livro (até um tanto pequeno, já que trata-se de uma novela – um texto menor que romance e maior que conto) acaba valendo por dois. Porque a releitura se fará necessária a partir do momento que alguém levantar esta questão da dúvida sobre os fantasmas existirem mesmo ou não. Passando para termos mais modernos, lembrem da quantidade de pessoas que voltaram para o cinema para rever O Sexto Sentido porque precisavam confirmar o que tinham deixado escapar para compreender o final do filme. Com A outra volta do parafuso o processo é semelhante. O leitor deseja reler a história nem que seja para buscar uma falha na prosa de James que dê uma resposta definitiva sobre o assunto.
Por outro lado é um pecado carregar esse tipo de dúvidas já na primeira leitura. Apesar da genialidade de James nos que se refere aos pontos de vista da narrativa, ainda assim A outra volta do parafuso é uma história de fantasmas. Mais do que isso, uma excelente história de fantasmas, tão boa que chegou a inspirar alguns sucessos recentes, como A menina que não sabia ler.
O conselho que posso dar é justamente esse, que se faça primeiramente uma leitura pelo prazer de ter uma ótima história de fantasmas em mãos. Aproveite, se assuste e imagine o rosto de Peter Quint na sua janela quando estiver sozinho em casa à noite por pelo menos uma semana. Mas depois retorne à Bly para investigar o relato da governanta, escolhendo então sua versão favorita para a novela, se os fantasmas existiam ou não.
Como eu estava fazendo uma terceira leitura (na ótima tradução de Paulo Henriques Britto), tomei um lado sem pudores e estava buscando elementos que comprovassem minha teoria de que não, os fantasmas não existiam e a governanta enlouquecera e/ou estava querendo torturar as crianças com essa história (o que por si só já seria arrepiante). É muito fácil duvidar da governanta, primeiro porque pouco sabemos dela (nem nome ela tem). Segundo porque ela é tão exagerada nas descrições das pessoas e acontecimentos, que não tem como não pensar que ela está escondendo algo muito ruim e deseja ganhar a simpatia do leitor (repare em como ela descreve os primeiros contatos com a sra. Grose, por exemplo).
Tudo parece tender perfeitamente para essa ideia de que ela é uma doida varrida, a não ser um pequeno detalhezinho perdido logo ali no primeiro encontro com o fantasma de Quint. A pergunta: como ela sabia que ele era ruivo? Ela não descrevera apenas um vulto, ela dá detalhes sobre ele, embora um tanto gerais, ainda assim detalhes. O leitor mais cético pensará que ela estava fazendo algo próximo ao cold reading com a Sra. Grose, esperando que ela lhe entregasse a identidade relacionando com alguém que vivera ali, calhou que a descrição batia com a de Quint, que morrera recentemente. Para amarar sua história, ela não é tão específica assim sobre a srta. Jessel, o outro fantasma.
Compreende então o que quero dizer sobre a amarração perfeita da narrativa? De como vale a pena reler o livro, depois de ter se divertido com o conto de fantasmas? É realmente um grande quebra-cabeças, um livro para quem gosta também do exercício de pensar, refletir sobre a leitura. Não acredito ser exagerado dizer que a dúvida que James levanta se aproxima muito de nosso “Capitu traiu ou não traiu?” da literatura nacional.
Sobre o título
Como André Conti conta no blog da Companhia, a escolha de como seria a tradução do título para o livro que saiu pela Penguin-Companhia foi bastante atribulada. O problema é que uma tradução literal não traz para o leitor brasileiro a real noção do que o título deseja passar. A volta do parafuso (the turn of the screw) em inglês tem o sentido de algo que falta para se completar a pressão sobre algo ou alguém. O título vem de um momento da conversa que antecede o relato da governanta, onde se diz:
(…)Se uma criança dá ao fenômeno outra volta do parafuso, o que me diriam de duas crianças…?
“Diríamos, é claro”, exclamou alguém, “que elas dão duas voltas!”
Esse trecho acaba justificando a escolha do uso de “a outra” complementando o original, porque não só passa muito bem a impressão de alguém apertando um parafuso (a pressão), mas também reflete bem o que se vê nesse diálogo da história. No final das contas uma ótima opção, confesso que até pouco tempo eu ainda gostava mais de Os Inocentes (que a versão adaptada para jovens da Scipione ganhou, seguindo o filme de 1961).
A outra volta do parafuso (ou: Concluindo)
É realmente impressionante tudo o que se pode tirar de um livro tão breve. A edição da Penguin-Companhia tem exatas 200 páginas, isso que, como nos outros títulos do selo, traz extras como um posfácio de David Bromwich (um ótimo guia para quem desejar fazer a segunda leitura, diga-se de passagem) e a cronologia de Henry James. E mesmo assim A outra volta do parafuso não se esgota, parece render muito para se falar, para se pensar.
E é por isso que insisto que não só os apaixonados por histórias de fantasmas devem visitar esta mansão em Essex, mas também qualquer um que tenha paixão pelo trabalho de verdadeiros artesãos da literatura. Trabalho impecável de James, que mostra que não só o enredo pode ser bom, porque a brincadeira entre o que é escrito e o que se lê rende infinitas possibilidades.
Um comentário em “A outra volta do parafuso (Henry James)”