Luka e o Fogo da Vida foi escrito para o filho mais novo de Rushdie, e assim voltado para o público infantojuvenil. Mas é o típico caso de livro escrito para um público mas que pode agradar todo tipo de leitor, porque resgata não só a magia de histórias já conhecidas (sejam de mitologias milenares, seja do imaginário da cultura pop), mas também a estrutura básica dos contos populares, dando aquela sensação de familiaridade com o texto que permite para quem o lê simplesmente se deixar levar pela história, seduzido página após página pelo mundo encantado criado por Rushdie.
O enredo é bastante simples: como vingança por uma maldição de Luka, um dono de circo amaldiçoa seu pai, fazendo com que ele passe a dormir profundamente e vá morrendo aos poucos. Luka então tem a oportunidade de entrar no Mundo Mágico, onde com a ajuda de diversas personagens buscará o Fogo da Vida, que permitirá que seu pai acorde. O livro todo tem uma forte ligação com os video games, incluindo save points e o conceito de fases, que Luka passa pouco a pouco, sempre encontrando novas personagens e ganhando o auxílio de outras tantas.
Mas o interessante é observar que buscando um artifício que encante as gerações modernas de crianças (no caso, o video game), Rushdie volta assim ao mais tradicional meio divertir e chamar a atenção de jovens, que é o conto popular. Se formos tomar as funções do conto popular como propostas por Vladimir Propp, conseguimos encontrar quase todas elas em Luka e o Fogo da Vida. Isso fica bem claro se observarmos um resumo dessas funções de acordo com Nelly Novaes Coelho1 :
1. Uma situação de crise ou mudança: é o desequilíbrio da normalidade que criará o desafio para o herói, ou ainda, como sugere Propp, o nó da intriga do conto.
2. Aspiração, desígnio ou obediência: quando o desafio que surge com a situação de crise ou mudança é aceita pelo herói.
3. Viagem: marcando a movimentação do herói para um ambiente que não lhe é familiar.
4. Desafio ou obstáculo: para que volte à normalidade realizando o desafio que o faz iniciar a viagem, o herói deve enfrentar dificuldades.
5. Mediação: trata-se do surgimento de um auxiliar mágico, natural ou sobrenatural, que ajudará o herói a vencer.
6. Conquista: quando o herói finalmente vence o desafio original.
Esta estrutura se repete em diversos de contos através dos séculos, e Rushdie sabiamente empresta esta estrutura, mesclando assim aos conceitos modernos envolvendo video games, mitologia antiga e referências da cultura pop, de modo a criar uma divertidíssima história que é simplesmente impossível de largar, independente de qual for a idade do leitor. Com uma narração deliciosa marcada por jogos de palavras bem sacados (o nome da cópia do pai de Luka em inglês, por exemplo, é Nobodaddy, mistura de papai com ninguém) e diálogos muito inteligentes, o autor utiliza um verdadeiro caldeirão de informações para preparar ali sua história.
Luka e o Fogo da Vida é encantador porque resgata o prazer da leitura da fantasia da mais alta qualidade, de se deixar levar por um rio de histórias e personagens incríveis que só conheceremos em um gênero fantástico. Ele nos alerta também para como dia após dia estamos deixando tudo isso de lado, e como a Magia está se apagando do universo, como é dito por uma das personagens:
“We aren’t needed any more, or that’s what you all think, with your High Definitions and low expectations. One of these days you’ll wake up and we’ll be gone, and then you’ll find out what it’s like to live without even the idea of Magic.”
Por isso entre tantos livros que representam a realidade, é bom de vez em quando se perder no Mundo Mágico como o criado pelo escritor, para lembrar que precisamos sim de uma dose de magia em nossos dias, para torná-lo mais doce e divertido como a prosa de Salman Rushdie neste imperdível Luka e o Fogo da Vida.
(Para quem ouve bem em inglês, fica como curiosidade um trailer do livro que inclui Rushdie e algumas crianças fazendo leitura de trechos)