No caso de Salman Rushdie, escritor nascido em Mumbai na Índia, mas que ainda jovem foi estudar na Inglaterra, acredito que deixar de lado sua biografia chega quase a ser um pecado, ainda mais no caso de Oriente, Ocidente, coletânea de contos publicada originalmente em 1994 e que agora a Companhia das Letras lança em formato de bolso através do selo Companhia de Bolso. O título mostra de bastante óbvia o que veremos nas (poucas!) 168 páginas do livro: mundos aparentemente tão diferentes se mesclam, criando uma literatura sem pátria, sem fronteiras – tal e qual acontece com pessoas como Rushdie, nascidas em um lugar mas que passaram a viver muito tempo de vida em outro.
O livro é dividido em três partes, cada uma com três contos. Abre com Oriente, cujas histórias passam na terra natal de Rushdie. É impressionante o quanto da cultura, da cor local o autor consegue captar e passar para o leitor. As imagens são tão claras que ao ler o livro a pessoa é imediantamente transportada para os becos escuros descritos por Rushdie. Dos três contos da primeira parte o destaque fica para Bom conselho é mais raro que rubis, justamente o que abre a coletânea.
De forma tocante ele mostra a situação de uma mulher prometida em casamento para um homem que vive na Inglaterra, indo buscar a documentação para viver no estrangeiro. É quase como um recorte da realidade, de certa forma de um momento bastante banal para a vida de tantos que vão tentar começar a vida no exterior, mas Rushdie consegue fazer isso de forma leve, de uma poesia ímpar.
Na segunda parte, Ocidente, Rushdie resgata a cultura ocidental através de um realismo fantástico, mágico. O tempo se mistura com ícones da nossa cultura, como Hamlet e Dorothy de O Mágico de Oz. É quase como se ele utilizasse um filtro sobre nossas histórias, recontando-as como um contador de histórias indiano faria, transformando esses ícones em mitos, e os mitos com toques de fantasia. O destaque aqui fica por conta do belíssimo Cristóvão Colombo e a rainha Isabel de Espanha consumam seu relacionamento (Santa Fé, a.d. 1492), embora os outros dois sejam igualmente muito bons.
Quanto a essa parte fica apenas a dúvida sobre a escolha da tradução do termo “slippers” para chinelos em No leilão dos chinelos de rubi, quando já se cristalizou no português o termo “sapatinho” – tanto para os “slippers” de cristal de Cinderela como os “slippers” de rubi da Dorothy no filme O Mágico de Oz. Mas de qualquer forma basta começar a ler o conto e entender o que são os chinelos de rubi, então não afeta em nada a compreensão do texto.
Por fim, chega-se na última parte, Oriente, Ocidente, que claramente marcará o encontro dos dois mundos, embora acredite que esse encontro já perambulasse nas outras partes também, aqui ele se dá de forma mais óbvia. Há aqui a sensação do deslocamento, de não se fazer parte de lugar nenhum justamente por pertencer a tantos lugares. Talvez o que mais obviamente represente esse choque entre as culturas seja A harmonia das esferas, na qual temos um narrador nascido na Índia que foi à Grã-Bretanha para estudar, tal como Rushdie. As personagens que fazem esse jogo da “harmonia das esferas” tem todas relações diferentes com a Índia e tão diferentes entre si.
Todos os contos são ricos, revelando a pluralidade cultural que um homem como Rushdie foi capaz de experimentar e, o que é melhor, compartilhar com seus leitores como um grande contador de histórias. Talvez o único defeito do livro é que seja tão curto, deixando vontade de mais contos. Mas mesmo assim, até pelo tamanho da obra possa valer como um bom aperitivo para quem quer conhecer mais do autor sem já começar por obras mais consagradas como Os Filhos da Meia Noite e Os Versos Satânicos.