Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto)

Alguns livros parecem estar ligados com nossas memórias dos tempos de escola. O problema é que nem sempre são as memórias gostosas como o recreio, as conversas com os melhores amigos ou a sensação boa de um bom resultado de uma prova. Tem momentos que ouvir nomes como “Dom Casmurro”, “Macunaíma” ou ainda “Senhora” causam um certo arrepio na pessoa, trazendo lembranças de leituras obrigatórias que resultariam em uma prova com perguntas idiotas como “O que disse a personagem x na página y?”.

É uma pena que muito da literatura em sala de aula ainda aconteça desse modo, afastando leitores não só da (excelente) produção nacional, mas às vezes do hábito da leitura em si. E a realidade é que mesmo dos que se salvaram desse modo antiquado de ensinar literatura, ainda assim não costumam dar uma segunda chance para livros que certamente o merecem, como é o caso de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Publicado pela primeira vez em folhetins em 1911, a obra de Lima Barreto está entre aquelas de “traumas da escola” que sem sombra de dúvidas devem ser relidas, sem a pressão da prova no outro dia, só por puro prazer. A começar pelo estilo da escrita de Barreto. Muito leitor jovem costuma colocar todos os clássicos da literatura nacional no mesmo caldeirão, dizendo que são “difíceis” de ler por causa do registro excessivamente formal do escritor.

No caso de Barreto, o que temos é um estilo que depois viria ser muito comum em literatura, bastante próxima da fala das pessoas da época. Por conta disso, a narrativa flui muito bem, sem se apresentar como um desafio para pessoas que estão começando a desenvolver o hábito da leitura. O irônico é que se considerar o Prefácio da edição da Penguin-Companhia1 essa qualidade da prosa de Lima Barreto era vista naquele momento como um defeito, ao qual o autor do prefácio justifica de forma precisa e corretíssima: “antes, mil vezes antes, singelo, familiar mesmo, do que pernóstico“.

Considerando que quase todo brasileiro acabou cruzando com Policarpo Quaresma enquanto estudantes, a verdade é que falar do enredo é até desnecessário: temos o protagonista que empresta o nome ao título, tentando colocar para funcionar três projetos de cunho nacionalista: mudar a língua falada no Brasil para o Tupi, plantar em um sítio e participar da revolta da Armada. O livro é dividido em três partes, cabendo a cada uma um desses projetos desta personagem quase quixotesca.

O tom da narrativa é leve, tendendo algumas vezes para o cômico e ficando mais pesado apenas ao chegar na terceira parte, aproximando do final trágico da protagonista. Mas é importante ressaltar que por “leve” não se quer dizer sem valor algum, já que todo o livro vem recheado de críticas ao Brasil daquela época que – talvez o mais chocante – em determinados momentos caberia muito bem para nosso país atualmente.

E retomando a questão da releitura, a verdade é que muito dessa crítica pode acabar passando batido pelo leitor, até por desconhecimento de peculiaridades do Brasil da época de Lima Barreto. É por conta disso que a edição de Penguin-Companhia chega como um verdadeiro presente para quem está disposto a reencontrar Policarpo Quaresma: com notas de Lilian Moritz Schwarcz, Lúcia Garcia e Pedro Galdino, a leitura torna-se muito mais completa, e ainda mais gostosa. Há páginas que são ocupadas quase que só pelas notas de rodapé (que eu falhei miseravelmente na tentativa de fotografar para ilustrar esse artigo). Como já havia dito sobre Papéis Avulsos (Machado de Assis) e O Amante de Lady Chatterley (D.H. Lawrence) o trabalho da editora com os títulos desse selo se compara a oferecer ao público um DVD recheado de extras. É livro para quem gosta de livro, para quem gosta de saber sempre mais.

O que traz à memória um trecho de uma coluna de André Conti no Blog da Companhia, no qual ele comenta da questão de ter títulos como o de Lima Barreto entre os lançados pelo selo Penguin-Companhia:

O nacionais são ainda mais complicados. Com exceção dos volumes organizados por nós (seleções de contos, de peças etc.) e de algumas pérolas esquecidas, são livros de ampla circulação, com literalmente dezenas de edições, em alguns casos. De novo: não se pode ter um selo de clássicos que não inclua Machado e Lima Barreto, por exemplo.

Para que se tornem interessantes ao leitor, essas edições precisam trazer algo de novo sobre o livro, invariavelmente. Seja uma reinterpretação ou um trabalho de contextualização (nas notas de rodapé), é preciso que esses livros ofereçam uma visão diferente da que se tem da obra. Para tanto, o editor pode se rodear de bons especialistas, acadêmicos, enfim, alguém capaz de realizar essa leitura.

E tendo Triste Fim de Policarpo Quaresma em mãos, é legal perceber como eles estão levando à sério esta questão de fazer algo diferente, que interesse o leitor. Porque não é só um caso de complementar uma leitura, mas também de tirar excelentes títulos como esse de Barreto da injusta lista dos traumas da escola. Se você ainda treme ao ouvir “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (que na sua mente vem sempre com o tom monótono de voz da sua professora), repense uma segunda chance. Um livro não é considerado um clássico à toa, e o fato de ter envelhecido tão bem já serve por si só como motivo para reler. Ou ler, caso na escola você tenha ficado só com o resumo.


  1. Escrito por Oliveira Lima, publicado pela primeira vez n’O Estado de São Paulo no lançamento da primeira edição do livro de Lima Barreto 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.