A partir dessa ideia das “férias” da morte, Saramago mais uma vez usa de sua língua ferina para criticar diversos setores de nossa sociedade e, por que não dizer, nós mesmos. Mas a crítica é feita com um senso de humor formidável, fazendo da obra talvez uma das mais leves que já tive a oportunidade de ler de Saramago, o que não deixa de ser irônico visto que lida com um dos nossos maiores tabus.
A crítica do autor construída a partir das consequências do fim das atividades da morte é brilhante, como quando alguns filósofos apontam que a Igreja precisa da morte para ter razão de ser, ou quando fala da atuação da “maphia”, que por dinheiro levava pessoas prestes a morrer para o outro lado da fronteira do país onde não se morria, para que essas pessoas finalmente tivessem paz. Todos esses momentos são recheados de digressões bastante espirituosas, como quando o narrador diz que o ministério da defesa era chamado “da guerra em tempos mais sinceros”.
As digressões e a fala direta com o leitor lembram em muito o estilo de Machado de Assis, até porque desenvolvem o tom irônico da obra, tornando a leitura leve, divertida – mesmo para quem não está acostumado com o estilo de escrever de Saramago, com os parágrafos longos e sem se prender às regras de pontuação.
Depois de vermos o que aconteceria se ninguém morresse, chegamos à segunda parte do livro, onde a morte anuncia o fim das “férias” e que voltará a ceifar vidas, incluindo as que já estavam pendentes. Nesse momento a morte decide enviar cartas violetas avisando as pessoas que elas terão uma semana de vida, o que gera uma série de novos eventos e questionamentos sobre o ato de morrer em si – será que é realmente bom saber quando ela virá?
Este ponto traz a morte para o centro da narrativa, ela torna-se protagonista. Conhecemos mais sobre ela e suas ações, com momentos bastante bonitos como “A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste“. Ou ainda “Em casos como estes é nosso costume dizer que assim é a vida, quando mais exactos seríamos se disséssemos assim é a morte“, ao descrever um empurrão que a morte dá em um trabalhador que está em um andaime.
Nesta parte também vemos a então protagonista envolvida com um problema para ela bastante irritante: um violoncelista não recebe as cartas violetas de aviso da morte. Ela deixa sua foice cuidando de ceifar as vidas enquanto vai resolver pessoalmente a questão, e por pessoalmente entenda-se aparecer como uma humana para o músico. Ela o segue durante uma semana, o vê tocando o violoncelo, conversam. E postergando a entrega da carta, cheamos ao desfecho belíssimo que transforma a narrativa em algo circular: No dia seguinte ninguém morreu.
Uma obra leve, deliciosa de ler e ao mesmo tempo consegue fazer críticas ferrenhas, e o principal, fazer o leitor pensar através das questões levantadas ao longo da narrativa. Poucos livros conseguem ser tão encantadores e belos falando de um tema como a morte. Talvez até por essas características seja um livro bom para recomendar como porta de entrada para o universo de José Saramago.
Este é o livro que menos aprecio do Saramago, dentre todos os que li. Achei o primeiro segmento da narrativa *muito* superior ao segundo – o qual falhou em reter a minha atenção por ser uma história bem simples, despojada de qualquer twist ou nuances que a elevassem ao grau de brilhantismo da primeira metade.
então, eu estava comentando sobre isso lá no meia. acho que é o mais fraco dele dos que eu li, mas ainda assim acho bom – superior aos livros de outros tantos autores, digamos assim.
a questão é que é uma narrativa bem mais leve, despojada da amargura sobre a condição humana que dá o tom em livros como o ensaio sobre a cegueira.
na realidade, pelo desfecho, eu acho até que é o que vê mais esperança no homem.
sobre os segmentos da narrativa, por incrível que pareça gostei mais do segundo. a conversa com a foice, e mesmo o desfecho me conquistou =S
O Saramago tá no meu Top 2, só perde pro Tolkien. Desbancou o Lovecraft com muitíssimos méritos.