Minha grande surpresa é que mesmo as releituras viraram novas leituras. Porque o trabalho com as notas de Hélio Guimarães (professor de Literatura Brasileira na USP) tornou textos já conhecidos como O Alienista e O Espelho algo completamente diferente, ampliando a noção do Rio de Janeiro e do Brasil de Machado e, mais do que isso, mostrando a pluralidade de referências do escritor, que citava autores então modernos como Allan Poe e Longfellow, além dos clássicos.
Além das notas de Hélio Guimarães, esta nova edição de Papéis Avulsos ainda conta com um brilhante prefácio de John Gledson (Doutor pela Universidade de Princeton), notas de Machado de Assis sobre seus contos, Preâmbulo a “Na arca”, cronologia e uma lista de sugestão de leituras relacionadas. Nos mesmos moldes da edição de O Amante de Lady Chatterley, é o equivalente a um DVD recheado de extras, que enriquecem infinitamente a leitura.
E sim, tem a capa laranja linda no padrão da Penguin na década de 30.
Ok, falamos sobre os extras, vamos ao texto. Nesta edição, os contos estão em ordem cronológica, de acordo com as datas em que foram publicados em revistase jornais para os quais Machado escrevia. É curioso saber que alguns deles o escritor acabou optando por assinar com um pseudônimo (caso de A chinela turca e A arca).
Papéis Avulsos vem cheio daquele Machado que nossos professores não cansavam de repetir no cursinho, a ironia no máximo e aquelas interrupções para conversar com o leitor, por exemplo. Mas o que mais chama a atenção nestes 12 contos que fazem parte da coletânea é como muitos deles ainda são atuais, mesmo quando se situam tão bem no Rio de Janeiro do século XIX. O leitor vê um espaço dominado por casas iluminadas por velas, personagens seguindo uma rotina que hoje em dia já não existe. Mas o interior do texto não envelheceu nem um ano sequer.
O destaque de Papéis Avulsos é sem sombra de dúvidas O Alienista, que muitas pessoas discutem tratar-se de uma novela e não um conto, mas para essa discussão gosto do que fala Machado já na Advertência que abre o livro: “Direi somente que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que não o são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse (…)“. Algum interesse é uma forma até modesta de falar dessa genial história que a todo momento levanta a questão da loucura, do que é ser louco e o que é o normal. Dr. Simão Bacamarte está sem dúvida na galeria das grandes personagens da literatura brasileira.
Ainda sobre a atualidade do texto de Machado, temos o ótimo A Teoria do Medalhão, com a conversa de pai para filho mais irônica que lembro de ter lido. Os conselhos do pai causam graça porque muito do que é dito ali se encaixa no que se vê nos dias atuais. São pequenos detalhes e passagens, características de personagens que dão esse tom, como também se pode ver em A sereníssima república.
Outro conto que chama a atenção é Na Arca, que Machado escreve como se fosse um trecho retirado da Bíblia (três capítulos inéditos do Gênesis). Fico pensando na coragem do escritor de publicar algo envolvendo personagens bíblicos naqueles tempos – já que mesmo nos dias de hoje envolver religião mesmo que como alegoria ainda possa causar dores de cabeças para autores. E o melhor é que o texto é engraçadíssimo, e muito bom.
Na realidade, toda a coletânea apresenta textos de bons para excelentes. Alguns podem passar meio batido em uma primeira leitura, como D. Benedita, mas aí a questão das notas acabam melhorando a leitura. Valeu a pena reler alguns e conhecer outros, ainda mais com todo esse cuidado desta nova edição. Foi quase como reencontrar um velho amigo depois de anos, e ver o quanto ele melhorou com o passar do tempo.