Prender-se apenas ao romance de Lady Chatterley com o guarda-caça Oliver Mellors, ou mesmo ao teor “pornográfico” do texto é quase um pecado. A obra de Lawrence vem forte como representante de uma nova Inglaterra que veio a surgir com o fim da Primeira Guerra Mundial. O declínio de um império, a adaptação da nobreza a uma nova realidade. Mesmo que predominantemente de forma sutil, tudo isso está lá, seja no apito da mina que avisa Lady Chatterley que é hora de voltar, seja no que a Guerra fez com os dois homens da vida da personagem.Há também, é claro, toda a importância histórica por trás da própria publicação do livro. Banido em seu lançamento (em 1928), ele só chegou a ser publicado novamente na Inglaterra depois que a Penguin venceu um processo em 1960. Para o olhar do leitor moderno pode chegar a ser chocante que um livro tenha sido proibido em tempos “tão próximos” aos nossos por conta de descrições de encontros amorosos e inúmeros palavrões, e talvez até por isso seja tão importante contextualizar a obra enquanto a lê. Sobre a questão da proibição do livro na Inglaterra, saiu uma ótima matéria na Folha de São Paulo, que você pode ler clicando aqui.
O romance flui bem, Lawrence não tem pressa em sua prosa e vai armando o cenário do encontro de Lady Chatterley com Mellors aos poucos. Somos apresentados à protagonista, descobrimos que teve uma juventude até bem livre para os padrões da época, mas a guerra acabou coincidindo com o que seria a entrada na vida adulta, casando-se com Clifford, que lhe dá o título de Lady. O marido vai para a guerra e volta paralítico, condição que inicialmente não afeta Connie mas aos poucos começa a consumi-la. A ideia que se tem é que não é tanto pelo prazer que lhe é negado com a nova situação, mas com o modo como Clifford vai sugando sua vida, a transformando em algo que era tão contra sua própria natureza.
E como acompanhamos esse processo em que Lady Chatterley desperta para sua realidade, quando do encontro com Mellors já sabemos que o amor entre os dois é previsível, por mais que inicialmente ele pareça arredio e mesmo grosso com a mulher. E é a partir de Mellors que temos a maior parte das ideias de Lawrence sobre a importância do amor livre, do mal que ver o sexo como algo sujo pode causar, como podemos perceber na passagem a seguir:
Na verdade o sexo é apenas toque, contato, o contato mais próximo que pode existir. E é o contato que nos mete medo. Vivemos num estado de semiconsciência, vivemos apenas pela metade. Precisamos nos tornar mais vivos e conscientes. Especialmente os ingleses, precisam entrar em contato uns com os outros, um contato delicado e terno. É nossa maior necessidade.
E se a contextualização da obra vem como algo importante no caso de O amante de Lady Chatterley, a edição da Penguin Companhia das Letras vem como um presente. É quase o equivalente literário de um dvd cheio de extras: abre com uma introdução de Doris Lessing (prêmio Nobel), o romance em si vem repleto de notas que complementam o texto. No final temos o artigo A propósito de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, cuja introdução será um prato cheio para quem gosta de história do livro (sobre toda a questão da pirataria na época), e o restante nos orienta das intenções do autor sobre O amante de Lady Chatterley. Ainda há uma cronologia envolvendo a obra e o autor e o apêndice “O amante de Lady Chatterley e a paisagem das Midlands inglesas“, com mapas e explicações sobre o espaço onde se desenvolve a narrativa. É realmente um mimo, daqueles que chegam a justificar a compra da edição mesmo já tendo alguma tradução do livro em casa.
Na realidade foi meu primeiro contato com um dos livros dessa parceria da Companhia das Letras com a Penguin e devo dizer que fiquei muito feliz. Uma excelente escolha de título, obra tão importante da literatura de língua inglesa, recebendo um tratamento tão cuidadoso e mesmo assim chegando às livrarias com um bom preço. É a felicidade para qualquer bibliófilo.
Talvez o único aspecto negativo foi a questão da opção da tradução da fala de Mellors. Para mim foi um pouco incômodo o “caipirês” adotado por Sergio Flaksman para registrar a fala da personagem. De qualquer forma, é uma opção válida e compreensível, já que no original Mellors tinha um inglês interiorano. No mais, as opções mesmo para os palavrões foram extremamente felizes: não houve tentativa de “abrandar” termos como cunt ou fuck, traduzidos todos com a mesma crueza das expressões similares em português.
Um ótimo livro, daqueles que realmente vale a pena conhecer. Chega até mesmo a ser triste pensar que por tantas décadas para algumas pessoas ele só esteve disponível de forma ilegal.