– Mas pai, por que você não continuou trabalhando com arte em vez de entrar no mundo dos negócios? … Ainda dá tempo de voltar atrás.
– Não dá mais para voltar atrás!! Estamos em uma jornada… a vida é uma viagem daqui até lá.
– … E onde fica esse lá, papai?
– Lá é onde estoura o trovão… Longe daqui!
O diálogo entre o jovem Willie e seu pai Sam ilustra com perfeição o eixo principal de Ao coração da tempestade, HQ de Will Eisner que chega agora no Brasil pela Quadrinhos na Companhia. Lançada originalmente em 1991, a obra tem forte tom autobiográfico e mostra as lembranças de um jovem artista quando segue em um trem em direção a Segunda Guerra.A imagem do trem seguindo em frente e Willie vendo seu passado através da janela remete ao diálogo citado, mostrando a vida como uma viagem. Alguns detalhes nas ilustrações ajudam o leitor a situar-se quanto ao tempo, quando certos acontecimentos aconteceram, mas a revisão do passado de Willie não chega exatamente a ser linear: confunde-se com memórias dos pais contando sobre suas vidas antes de casados, por exemplo.
É no relato dos pais que vemos um tema recorrente no trabalho de Eisner (como pode ser conferido em Avenida Dropsie): a construção dos Estados Unidos pelos imigrantes. O sentimento de ser daquele lugar, mas não ser reconhecido como parte dele por outros grupos. Aqui essa questão é ainda mais gritante, porque ele segue “ao coração da tempestade” para defender esse país que em determinados momentos não vê um judeu como parte do todo.
As personagens são extremamente cativantes porque são, antes de tudo, simples. Não querem mais do que serem aceitos e viver bem (e quem não quer?). Eu diria que talvez a mãe de Willie tenda um pouco para o esteriótipo de “mãe judia”, mas o pai principalmente é encantador, com aquela postura meio sonhadora de quem não se deixa perturbar pelas dificuldades.
A arte de Eisner em Ao coração da tempestade também merece destaque. Em alguns momentos há uma sequência sem qualquer fala das personagens, mas pelo traçado das expressões você consegue captar bem mais do que palavras conseguiriam dizer. E ele repete esse efeito várias vezes ao longo da história, sempre causando essa mesma sensação.
É sem dúvida uma grande graphic novel. Um daqueles trabalhos que mostram a vida como o que é: multifacetada, com momentos crus e de raiva com outros delicados e marcados pela felicidade. E justamente por fazer isso de forma tão simples e clara, Eisner conquista já nos primeiros quadrinhos, fazendo com que você só largue Ao coração da tempestade quando Willie chega ao final da jornada.