De qualquer forma, O Inimigo de Deus segue cumprindo com a mesma precisão a proposta de narrar as histórias sem o faz-de-conta e romantismo do que muitos pensam ter sido o tom predominante da época. As batalhas são descritas sem poupar qualquer detalhe mais sangrento, algumas convenções sociais da época podem revoltar assim como outros valores chegam a soar até mesmo ilógicos nos dias de hoje. O trabalho de Cornwell nos hábitos alimentares, religiosos e afins continua sendo um dos pontos altos da trilogia.
O interessante é que se em O Rei do Inverno a magia aparece de forma extremamente dúbia (algumas vezes até mesmo é questionada), em O Inimigo de Deus com uma presença maior de Merlin aparentemente a magia aparece com mais força, em alguns momentos sem dar tanta chance para algum questionamento (como acontecia no primeiro livro, quando quase sempre as coisas eram explicadas a partir do consumo de substâncias alucinógenas). E o que chama a atenção para como esse elemento passa a aparecer ao longo da narrativa, é justamente o fato de que as crenças das personagens passam a ser o eixo principal da obra.
Por um lado temos Merlin, Nimue, Derfel e outros na busca pelo Caldeirão (o Cálice Sagrado?), que traria os deuses antigos novamente para a Britânia. Do outro, temos o cristianismo ganhando cada vez mais seguidores, e com isso a igreja conquistando mais poder – e também o atribuindo a figuras como Lancelote (que deusdocéu, nunca imaginei que poderia ser caracterizado como personagem tão desprezível!). Há também Guinevere (vaca!) como seguidora de Ísis e Artur como um ateu. O que cada um acredita passa a ser razão da luta, uma vez que Artur finalmente consegue unificar a Britânia.
Eu ainda me surpreendo com a forma como Cornwell retratou Lancelote. Ele sempre foi um herói nas narrativas arturianas, e mesmo quando se apaixona por Guinevere é como representação típica do amor romântico: amar o que não pode ser seu, o que é impossível. Mas em O Inimigo de Deus ele simplesmente torna-se uma das personagens mais mesquinhas e manipuladoras que já vi em algum romance. E nesse caso é mérito do autor, conseguir fazer de uma personagem que via de regra é sempre tão querida algo tão detestável. Requer muito mais do que coragem, já que o resultado pode ser desastroso (o que não acontece aqui, vale frisar).
Mais uma vez uma ótima leitura, que desta vez deixa ainda maior a curiosidade do que está por vir no último volume da trilogia, até pelo modo como a história termina (o que por razões óbvias eu não posso comentar). De qualquer forma, enquanto não leio Excalibur, continuo aqui com a mesma dúvida que tive ao terminar O Rei do Inverno: como é que não filmaram essa trilogia ainda? Ninguém tem notícia alguma sobre adaptação, nem que seja série de TV de algum canal europeu obscuro? Parece um desperdício tremendo deixar essa história só no papel.
Pois é Anica. até agora, só conheço adaptações mesmo para a série Sharpe, feita pela BBC (Com o Sean Bean aiai…)
Estou só esperando o dia em que vão achar as obras do Cornwell e matar nossa vontade…
Ai, Anica, fiquei ainda com mais vontade de ler esse livro! O Rei do Inverno me agradou, e muito. Justamente por causa desse ar que o Cornwell deu para a trama: justificar a época, trazer para o real. As histórias por demais romantizadas deixavam a desejar. Assim parece que o leitor está muito mais próximo das personagens, sem falar que é muito melhor de formar imagens mentais de cada um e dos lugares.
E realmente, o que ele fez com o Lancelote foi coisa de mestre. =D