Em O Evangelho… o que temos é, obviamente, um foco no Novo Testamento. Saramago desconstrói a imagem que temos de Jesus, humanizando ao mostrar defeitos e fraquezas. Mas talvez até por conta disso, a ironia de Saramago em O Evangelho… é sutil, e não é nem de longe o tom predominante de uma narrativa que é extremamente densa. E agora temos Caim, no qual Saramago ao focar o Antigo Testamento desconstrói ninguém mais ninguém menos do que Deus, mas com um tom completamente diferente: narrativa leve, rápida e com o humor quase como constante.
Isso não faz de Caim um livro bobo ou pior do que O Evangelho…, longe disso. Na realidade, assim que acabei comecei a pensar em como é injusto compará-los, justamente por causa das escolhas de Saramago para narrar as histórias. Caim é excelente, daqueles livros que você devora do início ao fim – e acredito que seja uma ótima opção para quem ainda tem Saramagofobia começar a conhecer o escritor.
Começamos a história com Adão e Eva no paraíso, que me conquistou de primeira. Após os eventos que levam à expulsão, chegamos finalmente ao nascimento do protagonista, Caim, que após matar o irmão consegue convencer Deus de que o culpado do assassinato era Dele, por ver e não interferir. Reconhecendo sua culpa, Deus poupa Caim mas avisa que ele será um errante. E é aí que começam as andanças de Caim pelas histórias do Antigo Testamento: Jonas, Noé, Lot, etc.
O que Saramago faz para incluir Caim em todas essas histórias é que ao caminhar sem destino, ele encontra estradas de “Presentes diferentes”. Quase como viagens no tempo, saltando do futuro para o passado como quem vira uma esquina qualquer. E todas as histórias (incluindo o primeiro assassinato) têm um elemento em comum: o que seria a diferença do Deus misericordioso do Novo Testamento para esse Deus do Antigo, que pune, testa e pouco parece se importar com seus fieis.
E tudo isso com um senso de humor finíssimo, daqueles que não só te fazem rir, mas também pensar. Parte do humor se constrói com alguns anacronismos (como quando o narrador diz que Caim está perdido, “sem jumento e sem guia Michelim“), além de colocar o óbvio em palavras, o que acredite, funciona MUITO bem quando a ideia é criticar.
É realmente um livro único, daqueles que vale a leitura. Eu certamente não recomendaria para cristãos muito fervorosos (digamos assim), que certamente vão se ofender com o que lerão (hum, para exemplificar, tem lá um certo momento no qual o narrador chama Deus de filho da puta). Mas quem consegue separar literatura de religão, vai gostar, com toda certeza.
Detalhe que em momento algum o Saramago fala em Deus, apenas no senhor.
Baita livro.
ele fala em Deus, sim, tanto no discurso do narrador quanto das personagens. mas na maior parte das vezes ele utiliza o termo “senhor” mesmo.
(Aliás, adoro um capítulo que começa como “Deus não veio ao bota-fora” ou algo assim 😆 )
Do Saramago admito que só li “As Intermitências da Morte”, do qual não gostei muito, apesar do início promissor.
Mas sua resenha despertou em mim a vontade não só de ler Caim como também “O Evangelho…”
Por sinal, resenha mui bem escrita, as always. =D
valeu ^^