Vocês sabem, depois de Ubik virei fã desse autor. O modo como ele manipula a linha narrativa é único, e talvez ele seja um dos escritores que melhor lida com a questão da personalidade, não só do que pensamos que somos, mas também do que somos. E lá vem Sheep com esse elemento, então ler o livro sem lembrar da discussão nérdica “Será que o Deckard é ou não um andróide” foi simplesmente impossível para mim. Mas calma, calma, vamos por partes.
Primeiro e mais importante: o livro é bem diferente do filme. Muitos elementos que simplesmente não aparecem na película, como por exemplo o Mercerismo ou o valor que Deckard dava para o fato de ter um animal elétrico ou vivo. Isso só para começar. Tem outras coisas, como a esposa deprimida de Deckard e algumas personagens que ele encontra no caminho que são fundamentais no livro (como o outro caçador de andróides, Phil Resch). Mas antes que pensem “Ih, então o filme é uma droga como adaptação”, eu tenho que dizer que não, não é. No final das contas, é genial como Scott conseguiu pegar a essência da ideia do Dick e passá-la para as telas de modo a tornar o sci-fi palatável para quem não é fã do gênero.
Mas partindo do princípio que temos diferenças, vamos considerar a questão aqui coisas diferentes, e o que falo agora é sobre o livro, então por favor, não usem detalhes do filme para defender seu ponto de vista sobre Deckard ser ou não um andróide. Na narrativa de Dick, começamos com um dia qualquer na vida de Deckard. Ao chegar no trabalho, descobre que um dos caçadores de recompensas foi ferido ao tentar “aposentar” um replicante e que agora ele, Deckard, deve dar conta do grupo de seis replicantes fugitivos.
Por desejar mais do que nunca ter um animal de verdade em casa, e não a ovelha elétrica que o enche de vergonha, Deckard agarra a oportunidade e segue em busca dos andróides que têm que aposentar. As coisas até que seguem bem no primeiro caso, mas é no segundo que a história dá uma virada, quando após tentar aposentar Luba, ele é detido. Nesse momento entra uma daquelas jogadas de mestre do Dick, de simplesmente colocar em dúvida tudo o que ele escrevera até então. É como se Deckard entrasse em uma nova realidade, e não só ele mas o leitor também começa a duvidar do que foi colocado até então. Como assim existe um outro departamento de polícia? Como assim existem outros testes de avaliação de andróides e ninguém nunca ouviu falar do Voigt-Kampff? Por que ao ligar para casa ele não consegue falar com a esposa?
Pouco depois o leitor recebe explicações sobre isso, mas aí já é tarde: ele já assumiu a condição de alerta, de que em Sheep nada é o que parece ser. Somando a isso os dois andróides que cruzam o caminho de Deckard, Rachael e Phil, que não faziam noção de que eles mesmos eram andróides (e Phil ainda tinha um amor absurdo por seu animal de estimação, coisa que teoricamente seria impossível para um andróide). Com o fato de existir a possibilidade de andróides viverem como humanos, sem saber o que de fato são, a pergunta sobre o que é Deckard volta à tona.
Aqui é importante frisar que em nenhum momento no livro fica claro. Ele sempre se esquiva dos testes, alegando que ele foi testado (mas passar pelo teste pode ser uma memória implantada, não?) e quando finalmente faz um, conclui “Não há nada de inatural ou inumano nos testes de Resch, sou eu.”
Depois disso, vem a conversa de Deckard com Mercer, na qual o segundo diz “Exigirão que você faça algo errado, não importa onde você vá. É a condição básica da vida, exigirem que você viole sua própria identidade.”, o que pode estabelecer uma relação com a conclusão, de como Deckard está contrariado sobre matar os outros três andróides que sobraram.
E eu já estava caindo na armadilha de dizer “Ele é, ele é!” quando me dei conta que Sheep é tipo um Dom Casmurro do sci-fi. Da mesma forma que na obra do Machado não importa se Capitu traiu ou não (e nunca teremos respostas sobre isso), o mesmo acontece em Sheep, não importa se Deckard é ou não e nunca teremos uma resposta definitiva. Mais uma obra genial de Dick, até por conseguir deixar esse ponto de interrogação na testa dos leitores (ou mesmo permitindo as diversas interpretações).